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sexta-feira, 1 de julho de 2016

Um Ramadã diferente (ou, o cultivo é o de amor)


O texto abaixo narra um episódio na comunidade muçulmana LGBTQ norte-americana. Traduzimos e publicamos como tributo do blog ao Ramadã deste ano de 1437 a.H, na busca por um mundo de respeito e inclusão.

A imagem que ilustra o post é o "Ramadã dos pobres" (1938), pelo azerbaijano Azim Azimzade (1880-1943), agraciado com o título honorário de "Artista do Povo" pelo governo comunista soviético.

Um Ramadã diferente

Lamya H

Eu retornei do banheiro e ela estava folheando meu Corão.

Fazíamos o iftar em meu pequeno apartamento em Nova Iorque, apenas nós duas. As partes difíceis -preparar a refeição em cima da hora, cozinhar sem poder experimentar por causa do jejum, fazer a limpeza- já passaram e agora estávamos descansando no sofá, com um pote de cerejas entre nós.

Dei um pulo de dois minutos no banheiro e quando volto ela está folheando meu Corão. O Corão que tenho comigo desde o colégio, com todas suas páginas dobradas, orelhas, marcações e comentários a lápis. Olhar para esse livro é como olhar para minha própria trajetória: a época em que estava obcecada pela ideia de falar com Deus e sublinhava todas as súplicas em amarelo; as últimas páginas, mais enrugadas, com as suras que memorizei; as palavras destacadas que eu constantemente confundia. Uma complicada progressão da minha fé.

Eu deveria estar visivelmente nervosa, porque ela parou enquanto virava as páginas.

"Tudo bem se eu olhar isto?"

"Sim, claro", eu me percebi dizendo, porque... Bem, porque tenho uma queda por ela. Essa bela e radiante mulher que está em meu apartamento e que está, além de tudo, folheando meu Corão.

Ela parou em uma das páginas. "O que são essas marcações em azul?"

Hesitei. O Islã é altamente pessoal para mim e falar dele com pessoas que sabem que sou queer [NT: literalmente "estranho", aqui no sentido de homossexual, membro da comunidade LGBTQ], com pessoas que não possuem o mesmo vínculo com a religião, sempre foi difícil.

"Essas são as ayats [versículos] que falaram a mim neste ano".

Ela se ajeitou no sofá e leu o versículo marcado, enquanto eu roía as unhas apreensiva. Ao terminar ela levanta os olhos e simplesmente pergunta, "por quê?"

Bem, é uma longa história.

A história de um grupo de muçulmanos queer que se recusaram a ser excluídos em razão de sua identidade, neste Ramadã. Um grupo de muçulmanos queer que estavam cansados de se sentir deslocados nas mesquitas de suas cidades, mas que também estavam cansados de estar cansados- ou seja, de esperar por mudanças.

Começou como uma ideia ambiciosa: vamos criar nosso próprio espaço, vamos ler o Corão e quebrar o jejum juntos todos os dias. Os detalhes "técnicos", porém, dificultaram as coisas: onde fazer isso nesta cidade onde tudo é longe e os apartamentos pequenos? Como encaixar espaço em nossas agendas cheias? O que prepararíamos para comer?

A questão mais difícil, é claro, é o "como". Como deveríamos abordar o Corão? Como lidaríamos com as mais variadas relações que temos com a fé, e com o trauma que muitos de nós associam às interpretações clássicas? Como abordaríamos esse texto e a volumosa quantidade de tafsir [comentários, interpretação] com a qual não estávamos familiarizados, os séculos de exegese que nem sempre dialogavam conosco? Como leríamos esse livro, o qual fomos ensinados a ler através da leitura de outros? Acabamos, então, nos inspirando em um workshop chamado "Queering the Quran", no LGBTQ Muslim Retreat, do qual alguns de nós haviam participado, e onde o palestrante, um amigo querido, disse que talvez "fetichizássemos" muito o contexto original do Corão. Será que o contexto original não se encontra aqui, agora mesmo? Como seria ler o Corão através de nossas próprias lentes? Uma leitura que presume que Deus fala conosco, aqui e agora. Essa abordagem não desconsideraria nossas experiências vividas nem a interação cultural e contextual na interpretação do texto, reconhecendo que certos versículos são interpretados de forma opressiva, mas que isso não é determinante.

Então começamos as leituras. Não mais que um versículo ou dois por dia. Líamos traduções inglesas em voz alta, algumas vezes ouvindo a recitação árabe, então parávamos, meditávamos por alguns minutos, e então escrevíamos nossas reflexões para podermos discutir. Era maravilhoso. Ler, refletir e comentar. Verbalizando nossos desconfortos, algumas vezes raiva. Admirar a estética. Depois fazer a refeição, todos se perguntando como passaram o dia. As pessoas que não podiam estar presencialmente presentes participavam por meio do Skype. Interagir com jogos, acompanhar o outro ao hospital. Tornarmos-nos amigos; fazermos de nós uma família.

Conforme nossa intimidade e confiança aumentavam, começamos a nos recusar a esconder os versículos difíceis. Em um iftar perto do fim do Ramadã, a dúvida sobre qual verso ler pairou no ar, e houve um silêncio maior que o habitual. Então sugeri uma ayat que sempre me trouxe problemas.

Suas esposas são seu campo de cultivo, portanto cultive-o sempre que desejar (...) [2: 223]

Alguém leu outra tradução, ainda mais misógina:

Suas esposas são campos para você. Pode entrar em seus campos do jeito que quiser (...) [2: 223]

[NT. Na versão em língua portuguesa do professor Samir el-Hayek: "Vossas mulheres são vossas sementeiras. Desfrutai, pois, da vossa sementeira, como vos apraz;(...)"]

Ficamos atordoados em silêncio. Esse versículo caiu pesado em nós.

As sugestões de resposta começaram. O contexto histórico, uma amiga cautelosamente sugeriu. Disse que tínhamos a tendência de interpretar as coisas conforme nossa própria visão de mundo, sem perceber que o versículo poderia ter algum outro sentido particular na época e no contexto em que foi revelado, podendo até mesmo ser revolucionário em relação a outros termos com os quais as mulheres até então eram tratadas.

"Mas", alguém contra-argumentou, "o Corão diz que é universal no tempo e no espaço. Como encaixar nisso?"

"E quanto à utilização desse versículo para justificar a violência contra as mulheres?"

"Nem todo versículo fala para todos em todas as épocas. Em nossas vidas, selecionamos e escolhemos aquilo que nos diz respeito; por que não estender esse filtro também à religião?"

E, então, uma voz calma. "E quando essas explicações não parecerem suficientes?"

Ficamos em silêncio.

Alguns minutos depois alguém disse, esperem. Por que estamos sexualizando esse versículo? Por que estamos interpretando "depositar semente", "cultivar", como um clichê, na metáfora do campo? E se o campo, o "lugar de cultivo", na verdade significar um lugar de cultivo emocional? E se Deus está nos dizendo para pensarmos em nossos relacionamentos como campos de cultivo, algo que precisa de nosso cuidado e esforços para florescer, dar frutos, em um sentido emocional?

O som do adhan [chamado para a oração] tocou no aparelho celular de alguém. Com aquele comentário reconfortante, era um ótimo momento para encerrarmos.

Narrei tudo isso a ela, essa mulher folheando meu Corão em meu apartamento. Foi nesse contexto que as ayats que ela acabou de ler foram sublinhadas.

Contei a ela como, no dia seguinte, liguei meu iPod enquanto trabalhava para me desligar do mundo, pois interagir com as pessoas durante o jejum sempre me desgastava. Para preencher o vazio decorrente disso, coloquei a recitação do Corão para tocar, e veio um versículo por acaso. Esse versículo me deixou atordoada e sem fôlego. Reconhece a incerteza inerente às interpretações, argumenta contra o literalismo, faz um lembrete para que façamos nosso julgamento. Uma resposta.

Ele foi Quem te revelou o Livro; nele há versículos fundamentais, que são a base do Livro, havendo outros alegóricos. Aqueles cujos corações abrigam a dúvida seguem os alegóricos, a fim de causarem dissensões, interpretando-os ardilosamente. Porém, ninguém senão Allah conhece a sua verdadeira interpretação. Os sábios dizem: Cremos nele (o Alcorão); tudo emana do nosso Senhor. Mas ninguém o admite, salvo os sensatos. [3: 7, v. Hayek]

Contei tudo isso a ela, que ouvia a tudo encantada, com perguntas que faziam meu coração bater mais rápido.

Esse foi um imenso salto de fé. O mais íntimo que jamais fiz.

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