Páginas

sábado, 16 de julho de 2016

O que é o Corão?


O texto abaixo traz uma abordagem racionalista do Corão, considerando o teor do Livro não como ditado diretamente pela divindade, mas sim como sendo produto de interpretação humana sobre a revelação original, escrito, compilado e organizado ao longo de décadas. É semelhante à posição, dentre outros, do professor alemão Leo Pollmann, que "no trato interpretativo do Alcorão [considera] esse livro em amplo sentido uma obra literária de Maomé [Muhammad], guiado por revelações, e que ele é seu autor" ("O que contém realmente o Alcorão?", trad. Enio Paulo Giachini, Loyola).

O que é o Corão?

Said Nachid

Há um erro comum que precisa ser corrigido: quando falamos de Corão, confundimos três fenômenos que diferem em forma e conteúdo. Em verdade, pode ser que tal erro não seja superficial, mas sim um dos mais duradouros com os quais os estudos corânicos têm lidado -os mais racionalistas inclusive-, com resultados sempre favoráveis ao pensamento fundamentalista salafista.

Com efeito, temos diante de nós um pressuposto incontestado, funcionando como um círculo vicioso que nos joga para trás sempre que é feito um esforço de renovação. Esse pressuposto é inspirado no verso corânico que declara, literalmente ou em sua suposta literalidade, o seguinte:

Tudo emana de Allah! Que sucede a esta gente, que não compreende o que lhe é dito? (4:78, v. Hayek)

Nosso objetivo é questionar esse pressuposto incontestado.

Ou seja, o Corão não é a palavra de Deus, inteira e completamente ("Tudo emana de Allah")? Isso não significa que o mushaf [NT: as páginas, o conjunto de páginas, de texto escrito] que temos em mãos, do jeito que é organizado, dividido em capítulos, do jeito em que é escrito, ilustrado, caligrafado, vocalizado e com todas suas declinações gramaticais- é também "de Allah"?

Vamos fazer uma operação simples. Se levarmos o pressuposto incontestado "Tudo emana de Allah" ao limite, cairíamos em um pântano de opiniões absurdas, opiniões que sustentariam que o mushaf e sua escrita, páginas e tintas seriam tudo "emanado de Allah"! Nós devemos portanto dar um passo atrás e desafiar esse pressuposto incontestado, começando pela pergunta: o Corão é realmente a palavra de Deus? O Corão é um texto ditado pelo Céu? Sendo que essa pergunta não contém uma armadilha, que paralisa nossa capacidade inventiva e nos obriga a aceitar um dos dois extremos, o da absoluta aceitação ou o da absoluta rejeição?

Um certo relativismo é inevitável. Mas em todo caso não há respostas boas para perguntas ruins- daí porque primeiro temos que responder a isto: qual é o significado do Corão? Deixando de lado tendências reducionistas, sejam espirituais ou mundanas, o Corão faz referência a três distintos fenômenos que não podem ser confundidos entre si:

1) A Revelação Divina- ou seja, formas de revelação sentidas e recebidas pelo Profeta, seja através da força de sua imaginação, como sustentam al-Farabi, Ibn al-Arabi e Spinoza, a respeito da experiência do profetorado, ou seja através do coração e da emoção, como defende o reformador iraquiano Ahmad al-Qabbanji.

2) O Corão muhammadiano- isto é, o fruto dos esforços do Mensageiro para interpretar a Revelação e traduzir a mensagem divina em termos humanos, a partir de sua consciência, sua cultura, seu caráter, personalidade e habilidade interpretativa. Tais esforços duraram em torno de um quarto de século, e a distinção entre o Corão muhammadiano e a revelação divina foi anteriormente comentada pelo reformador religioso iraniano Abdolkarim Soroush.

3) O mushaf otmaniano [NT: Otman, Uthman (576- 656), o terceiro califa, sob o qual o Corão adquiriu seu formato definitivo]- o fruto dos esforços dos muçulmanos para transformar o Corão muhammadiano, por meio de uma primeira fase de versículos transmitidos oralmente e dispersos entre múltiplos mushafs, para uma segunda fase, de múltiplos para então um único compreensível mushaf, conforme uma específica forma de composição, arranjo, organização de capítulos, e de acordo com regras definidas de linguagem, escrita e caligrafia. Tais esforços duraram meio século. É preciso lembrar que esse trabalho foi inicialmente conceitualizado pelo pensador sírio George Tarabishi, definindo-o como a "mushafização do Corão".

Podemos abordar de outro jeito. Quando falamos do discurso corânico, estamos lidando com três níveis de manifestação:

1) Revelação divina- obscuras formas de revelação sentidas pelo Mensageiro que as expressava a partir de sua cultura, sua linguagem e seu meio;

2) O Corão muhammadiano- versículos, principalmente orais, espalhados pelas memórias das pessoas e por vários objetos [NT: os versículos eram inicialmente registrados em folhas de árvores, pedras, pedaços de pergaminho etc.], inclusive versículos assumidamente, ou considerados, como tendo sido cancelados ou esquecidos ("Não anulamos nenhum versículo, nem fazemos com que seja esquecido (por ti), sem substituí-lo por outro melhor ou semelhante", 2:106, v. Hayek).

3) O mushaf otmaniano- que tomou a forma de um texto oficial, compilado, arranjado, organizado e gramaticalmente declinado pelos muçulmanos ao longo de um período de décadas após a morte do Profeta.

O problema evidente é que o jeito com o qual lidamos com o Corão não é possível sem sua última manifestação, isso é, o mushaf de Otman. Em verdade, somos até mesmo incapazes de alcançar isso, na medida em que as cópias originais dos mushaf otmanianos permanecem perdidos para nós. Nesse sentido, possuímos apenas cópias posteriores, que foram alteradas e reescritas após a codificação da linguagem, da escrita e da caligrafia, muito provavelmente durante a época do califado de Abd al-Malik [Abdal Malique] ibn Marwan (646-705).

A questão então é: o que de tudo isso é a "palavra de Deus"? Que pergunta espinhosa! Proponho então uma analogia simples para respondê-la: a relação entre pão e trigo. É claro, sem trigo não teríamos pão, mas isso quer dizer que o fazendeiro que produz o trigo também é o criador do pão? Evidentemente o criador do pão é o padeiro, e não o fazendeiro, que apenas providenciou a matéria-prima: o trigo.

A relação entre o Corão e Deus é similar à relação entre o pão e o fazendeiro. Ou seja, sem Deus o Corão não existiria. Mas o Corão não é a palavra de Deus, assim como o pão não é criação do fazendeiro. Deus é o produtor da matéria-prima que é a Revelação, assim como o fazendeiro é o produtor da matéria-prima que é o trigo. E assim como o padeiro é quem transforma o trigo ou a farinha em pão, de acordo com sua visão, criatividade e técnica, o Mensageiro é o responsável por interpretar a Revelação e transformá-la em palavras e expressões conforme sua visão pessoal.

Podemos deduzir disso que o Corão é a palavra do Mensageiro Muhammad, suas palavras expressas de acordo com sua cultura, sua linguagem, sua personalidade, seu meio e sua época. Isso não significa negar o papel de Deus, que é o provedor da matéria-prima. Mais precisamente, se tivermos em mente que nós não conhecemos mais da recitação corânica do que o mushaf, organizado, compilado e escrito em dado contexto e de acordo com determinadas regras e condições, seremos capazes de compreender que temos diante de nós um texto indiscutivelmente humano, ou que assim deve ser considerado.

Talvez fique mais claro agora- quando falamos do Corão não podemos confundir estes três níveis:

1) A Revelação Divina que inspirou o Mensageiro e que representa a matéria-prima, a qual não podemos conhecer senão por intermédio da interpretação de Muhammad;

2) O Corão muhammadiano, que é produto da interpretação da Revelação Divina, a qual, por sua vez, não podemos conhecer senão por meio da interpretação do texto escrito (mushaf);

3) O mushaf otmaniano, que representa a forma oficial do texto do Corão de Muhammad, o qual, como dito, por seu turno é simplesmente uma interpretação da Revelação.

Em verdade, não sabemos nada do mushaf de Otman além de cópias posteriores que chegaram até nós, após a codificação do idioma, da escrita e da grafia. E com variáveis leituras, vocalizações, declinações gramaticais e às vezes com "variações tipográficas" na divisão e no número de versículos de alguns capítulos.

Tudo isso significa que o que temos do Corão são cópias de cópias, e que não conhecemos nada além de interpretações de interpretações. Ou seja, podemos afirmar que a cópia do mushaf de Otman que chegou até nós -com todas suas variáveis leituras- é um texto humano, histórico e terreno, no sentido mais semântico desses termos. Está claro que sua fonte primária é a inspiração divina, mas a água da chuva não pode retornar intocada às nuvens. É mais acertado, portanto, dizermos que após o Mensageiro ter convertido a inspiração divina no Corão muhammadiano, e os muçulmanos subsequentemente o terem convertido no mushaf de Otman, ele se torna um texto humano, tanto em forma e conteúdo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...