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sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Elogio do sono


Os atos de dormir e sonhar sempre tiveram forte carga simbólica. A perda, por algumas horas, do contato consciente com o mundo exterior decerto assombrava o homem primitivo. É sintomático que entre os gregos Hypnos, o deus do sono, seja irmão de Tánatos, deus da morte. Um dos filhos de Hypnos é Morfeu, que por sua vez é deus dos sonhos, daí o nome do opiáceo morfina. A associação entre morte e sono aparece de forma poeticamente bela no texto corânico:

Ele é Quem vos recolhe, durante o sono, e vos reanima durante o dia, bem sabendo o que fazeis, a fim de que se cumpra o período prefixado (6: 60)

Allah recolhe as almas, no momento da morte e, dos que não morreram, ainda, (recolhe) durante o sono. Ele retém aqueles cujas mortes tem decretadas, e deixa em liberdade outros, até um término prefixado (39: 42)

O sono como uma morte "temporária". Não se trata contudo apenas da perda da consciência: o ato de dormir traz consigo o desvelar onírico e sua poderosa força psíquica (objeto dos estudos psicanalíticos) e, mais que isso -o que parece ser consenso nas diversas tradições espirituais e religiosas- um campo aberto para a sintonia com a divindade. Também nesse ponto abundam referências no Corão, como as aventuras de José (Yusuf), intérprete de sonhos, ao longo da 12ª surata. Indo além, podemos adentrar profundas discussões filosóficas e teológicas. Conforme Abdul Qadir al-Gilani, "Allah disse: 'Este mundo não é senão um sonho'. É um sonho para os que se encontram dormindo. Eu estou desperto". Qual o limiar? Deixemos em aberto.

Os versos abaixo são do "Masnavi" de Rumi. Vertemos para o português a partir da versão em inglês de E.H. Whinfield, de 1898. A imagem que escolhemos para ilustrar o post é "Flaming June" pelo inglês Frederic Leighton (1895).

Masnavi, livro I, história III (fragmento)

Jalal ad-Din Rumi

Toda noite Tu libertas nossos espíritos do corpo
E de seus ardis, fazendo-os puros como tábulas rasas.
Toda noite, espíritos são libertados dessa jaula,
E tornados livres, sem comandar nem ser comandados.
De noite, o prisioneiro não tem consciência de sua prisão,
De noite, o rei não tem consciência de sua majestade.
Aí, não se pensa em perdas e ganhos,
Nem se dá atenção a isso ou àquilo.

(Original: The Masnavi)

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