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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Considerações sobre magia


J. L. Tejo
editor do blog

Como definir magia? Aleister Crowley, em seu Livro 4 (Liber ABA), se referindo a seu sistema como Magick (diferenciando-o da vulgarizada expressão "magic"), a define como a "ciência da vida". Por sua vez, em seu "Dogma e Ritual de Alta Magia" o ocultista francês Eliphas Lévi a distingue como sendo "a ciência tradicional dos segredos da natureza", e delimita dois campos: "O mago dispõe de uma força que conhece, o feiticeiro procura abusar do que ignora".

Tal delimitação nos parece importante. Toda e qualquer ferramenta -seja corpórea, literalmente falando, ou incorpórea (o conhecimento, o saber, a técnica)- pode possuir um bom ou mau uso conforme o utilizador. Determinada substância pode ser medicamentosa ou venenosa, a depender da forma como é ministrada. O mal não está, portanto, na substância ou na ferramenta, mas naquele que lhe opera. Ser mago ou ser feiticeiro, na distinção de Lévi, diz respeito ao conhecimento que temos sobre a ferramenta e à forma como vamos utilizá-la.

Quando se fala, assim, em ruqyah, se está falando, em um sentido mais literal, em recitação, invocação, súplica. Ampliando o leque, podemos estar falando em encantamento e magia. Também aqui aparece a distinção de Lévi, conforme o uso ou abuso da prática. Se direcionada a Allah, com o escopo de cura, proteção ou qualquer outro desiderato benéfico, temos ruqyah as-sharia, isto é, a invocação de acordo com a Lei, legítima, em consonância com os propósitos divinos. Por outro lado, caso o destinatário da súplica seja outro que não Allah, atribuindo-lhe associados, ou com objetivo maléfico (estando a divindade isenta de mal, a invocação nesse sentido necessariamente é destinada a outro que não Allah), temos a modalidade vetada, ruqyah as-shirk, o politeísmo, a magia negra.

O Corão, nome cuja própria etimologia remete a recitação, é um chamado constante à evocação da divindade.

Invocai vosso Senhor humílima e intimamente (7: 55)

(...) invocai-O com temor e esperança (7: 56)

Os mais sublimes atributos pertencem a Allah; invocai-O, pois (7: 180)

Ao invocar, intimamente, seu Senhor (19: 3)

Só invocarei o meu Senhor; espero, com a invocação de meu Senhor, não ser desventurado (19: 48)

Evocar a divindade, isto é, o prosaico ato de rezar, teria caráter magístico. Parece que a magia está imbricada à própria vida, no diapasão dos ocultistas europeus citados no início do texto.

Magia não se trata, portanto, ou pelo menos não se trata apenas, da ritualística associada a costumes pré-islâmicos, invocação de jinns etc. Bruce Lawrence ("O Corão: uma biografia") alude à prática de escrever versículos e fórmulas corânicas em papeis e ingeri-los como pílulas, para fins de cura, ou ainda ao uso de uma numerologia islâmica, pois, conforme o autor, "cada letra do alfabeto árabe tem um valor numérico e esses números, quando somados, nos dão um total que representa simbolicamente uma frase sagrada". A própria sunna é repleta de exemplos de prescrições de caráter ritualístico. Entendemos, conforme já sustentamos em outro texto, que o ritual deve ceder à intenção, isto é, importa o que se pretende, e não o formalismo gestual repetido mecanicamente. É menos "reproduzir" (o gestual, a recitação de fórmulas etc.) e mais o "conhecer" (o fundamento, a ciência) daquilo que se pretende manipular e/ ou influir.

Como entender e definir magia, à luz da abordagem agnóstica, cética, com a qual nos identificamos?

Parece-nos que nada mais é que o conhecimento (e consequentemente capacidade de domínio) da natureza e de suas forças. Nesse sentido, magia em nada se difere de ciência. Como no passado o desconhecido era tomado por bruxaria, ainda hoje estamos às voltas com nossa limitada compreensão do mundo, apesar dos evidentes avanços tecnológicos ao longo dos séculos.

E os incrédulos dizem sobre a verdade, quando lhes chega: Isto nada mais é que pura magia! (34: 43)

Falar de magia não é falar de algo sobrenatural- sendo a natureza obra da divindade, não se pode conceber algo "sobre" a natureza, isto é, que não se sujeite a suas leis, a menos que concebamos outra divindade mais poderosa que a que estabeleceu as leis naturais, o que nos levaria a abandonar o conceito de tawhid (monoteísmo). E sim falar da própria natureza e seus fundamentos, de cuja compreensão estamos sempre no encalço em nossa jornada (errática) de seres racionais.

***

A imagem que ilustra o post é "A oração" (1894), por Pierre Jan Van Der Ouderaa (1841-1915). Como sugestão de leitura sobre o tema trazemos os seguintes links:

"Ruqyah- Spiritual Healing" - http://bit.ly/2dMAuOy

"What is Ruqyah?" - http://bit.ly/2dQ6Rag

"Exorcism in Islam" - http://bit.ly/2eL6KkP

2 comentários:

  1. É uma visão que parte de uma determinada crença, no caso, a islâmica. Não vejo o politeísmo como um mal, e portanto, não considero como negativa a magia associada a outras divindades. Vejo como negativa (palavra que prefiro à negra) a magia que busca prejudicar ou interferir no livre-arbítrio de alguém.

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    1. De fato, tawhid (monoteísmo) é um "conceito central" (como diz a Wiki) no Islã. O tema, a partir de uma ótica islâmica, deve necessariamente ser abordado por esse prisma.

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