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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Deus, conceito em evolução


O texto abaixo é na linha de um agnosticismo muçulmano, onde, sem deixar de reconhecer a possibilidade de existência da divindade e sua interação com a existência (portanto um agnosticismo teísta), rejeita as concepções tradicionais e antropomorfizadas de Deus. Assim, ao invés da "certeza" arrogante do fundamentalista, apregoa a humildade da dúvida e a aceitação de nossas limitações humanas para compreender o divino.

Deus, conceito em evolução

Hassan Radwan

Um dos meus ahadith favoritos é o qudsi que diz:

Eu sou o que Meu servo acredita que Eu seja.

É um hadith curioso. Por que Deus seria conforme o que pensamos dele? Somos apenas seres humanos imperfeitos e nossa ideia de Deus difere de pessoa a pessoa. Contudo esse é um dos meus ahadith favoritos, exatamente porque lembra que todos nossos conceitos de Deus são apenas conceitos humanos imperfeitos e que mudam e evoluem conforme nós próprios mudamos e evoluímos. Ele lembra que o que quer que Deus seja, nós somos incapazes de compreendê-lo em plenitude.

Eu frequentemente critico aspectos do Islã e das religiões em geral, e muitos equivocadamente acham que estou "atacando Deus". Mas não estou. É impossível atacar Deus. O que estou atacando são nossos conceitos antiquados de Deus. Como diz o Corão, "não há nada como Ele", Ele não tem nada assemelhado. Tudo o que temos são conceitos humanos criados pela mente humana. Aliás, considero a própria palavra "Deus" problemática, por sua associação com a imagem de um deus "humano". Como o filósofo grego Xenofonte escreveu, "se os cavalos tivessem deuses, tais deuses pareceriam com cavalos".

Desde que nos tornamos seres inteligentes e conscientes, temos tentado explicar de onde o mundo e nós mesmos viemos. As religiões são invenções nossas. São nossas respostas à realidade dolorosa de nossa finitude e ao que poderemos encontrar após a morte. Queremos saber por que estamos aqui e ter o controle de nosso destino e lidar com os desafios da vida.

As religiões nos ajudam a responder essas questões, nos empoderam e nos ajudam a lidar com os medos. Nossa imagem de Deus evoluiu e mudou conforme nós mudamos e ampliamos nossa compreensão do mundo. Os deuses primitivos diziam respeito às nossas necessidades e medos. O sol era tão necessário às nossas vidas que se tornou um dos deuses mais antigos e duradouros, o touro, por exemplo, foi outro deus antigo comum, assim como a deusa-mãe da fertilidade, frequentemente retratada como uma mulher grávida bem nutrida. Muitos desses deuses tratavam de áreas específicas da natureza ou do destino do homem. Havia deuses do vento e dos mares. Os antigos gregos tinham Zeus, como o deus do céu e do trovão, e os antigos egípcios, Osíris, deus da morte e ressurreição. A lista é interminável. E, em um mundo de povos isolados, cada região tinha seus próprios deuses. Por exemplo, para os escandinavos não era Zeus o deus do céu e do trovão, mas sim Thor.

Isso tudo nada tem a ver com a existência ou não de Deus. Trata-se simplesmente de nossa noção humana e imperfeita de Deus e de como ela mudou e evoluiu conforme nossa própria mudança e evolução.

Assim como as regiões e tribos guerreavam entre si, também os deuses o faziam- cada qual protegendo e atendendo às súplicas de seu próprio "povo escolhido". Conforme as civilizações cresciam e se tornavam mais poderosas, também seus deuses ampliavam seus poderes e se tornavam "multitarefas". Uma das mais notáveis tentativas de juntar muitos deuses em um só foi a do faraó Akhenaton, que buscou combinar os antigos deuses egípcios em um único deus: Aton [o Sol].

O que se revelou mais bem sucedido nesse sentido foi o deus dos israelitas, uma pequena tribo do Oriente Médio, cujo Javé [Yahweh] originariamente era um deus local que enfrentava outros como Baal, dos filisteus. Baal é mencionado na Torá com o nome pejorativo de Baal Zebub, "Senhor das Moscas", talvez como referência a estrume. É quase uma ofensa infantil ao conceito de deus da tribo alheia: "Seu deus tem cara de cocô!". Baal era retratado com chifres e cascos, e é fácil perceber como a tradição abraâmica utilizou esses ingredientes na imagem do Diabo -Satã-, o adversário maligno de Deus. Evidentemente não é surpresa que o deus de uma tribo fosse considerado maligno pela tribo rival.

Um pequeno número de judeus se separou da maioria e consideraram um de seus profetas como sendo o Messias e o filho de Deus, e passaram a pregar também para não-judeus. Com o apoio do Império Romano, a Cristandade -como a nova religião viria a ser conhecida- começou a evangelizar pelo multiétnico e multirreligioso mundo romano, com a mensagem de um Deus único da humanidade acima dos laços tribais dos antigos deuses.

O Islã brotou no mesmo meio cultural- em especial, a cultura semítica, da qual os árabes são parte e de onde vem a palavra "Allah", relacionada a "Eloah", o hebraico para "Deus". O Islã colocou ainda mais ênfase na natureza monoteísta de Deus, através do conceito de tawhid. Tanto a Cristandade quanto o Islã se tornaram religiões evangélicas: a crença de que a mensagem do Deus único deve ser transmitida a toda humanidade.

Apesar do êxito da visão monoteísta, Deus ainda continua antropomórfico; e mesmo com os grandes esforços do Islã para banir representações físicas de Deus, seus textos ainda Lhe atribuíam comportamentos e emoções humanas. Um Deus que interfere diretamente nos assuntos dos homens, que responde orações e envia anjos para ajudar em batalhas. Que está preocupado com como nos lavamos, nos vestimos e comemos e bebemos.

Felizmente, em tempos mais recentes começou a haver um movimento de distanciamento em relação a essa concepção de Deus. Eu acredito que passamos por uma época de transição e, apesar do mundo parecer mais confuso e caótico do que nunca, com frequência é justamente nos momentos mais sombrios da humanidade que conseguimos dar passos adiante. Creio que a humanidade chegou a uma encruzilhada que nos dará um grande salto na nossa concepção de Deus. Uma concepção ajustada à nossa cada vez maior compreensão do universo.

Então como podemos "re-imaginar" Deus? O primeiro passo é admitirmos nosso desconhecimento sobre o o assunto. Tudo que temos são perguntas sobre como o mundo surgiu. Parece que "algo" foi necessário, mas não sabemos que "algo" é esse. Está além de nossos conhecimento e razão atuais. Em função dessa abordagem de Deus, mais humilde e modesta, devemos abandonar toda ideia de exclusividade. Ninguém pode dizer que possui exclusivamente a resposta correta, ou que o Deus descrito em minha escritura favorita é exclusivamente a resposta correta. Na medida em que todas as tentativas de resposta se encontram fora do âmbito da razão e da lógica, ninguém pode insistir que um único cenário em particular -fora do âmbito da razão e da lógica, repito- seja a única resposta correta, e que todos os demais estão errados porque estão... fora do âmbito da razão e da lógica.

A "certeza" está na raiz do fanatismo religioso. Quanto mais se está certo de conhecer a "verdade" sobre Deus, mais acusatório, mente estreita e arrogante se torna. Mais se tentará impor sua vontade sobre os outros. E, ao contrário, quando percebermos o quão pouco conhecemos sobre determinados assuntos e o quão limitada é nossa compreensão, mais humildes, tolerantes e mais abertos nos tornamos.

Nós precisamos, simplesmente, aceitar o que não conhecemos. Isso não é sinal de fraqueza nem de fracasso, e sim de força. Apenas sendo honestos e abertos às possibilidade poderemos avançar e aumentar nossa compreensão. Admitir que não sabemos e questionar as crenças de nossos antepassados é essencial para nosso progresso enquanto espécie. Se nós nunca questionarmos as visões dominantes, estaremos apenas endossando-as.

Evidentemente, está tudo bem em buscar Deus em qualquer tradição, cultura e religião que nos traga conforto e paz- o conforto psicológico que a religião traz é uma fonte de força e benefícios.

Mas o passo crucial que devemos dar é adotar uma abordagem inclusiva e universalista, que aceite que há muitas formas de se alcançar esse "algo" chamado Deus. Apesar das forças reacionárias, é encorajador ver que há muitos muçulmanos esclarecidos, bem como fieis de diversas religiões, que adotam tal abordagem inclusiva e universalista em suas crenças. São pessoas que descrevem Deus como a fonte criadora da existência, a força cósmica de toda a vida. Ao invés de um ser em separado, um Deus que é o centro do ser, entrelaçado a toda existência. Um Deus que dá à vida sua própria estrutura. Podem dizer, também, que Deus é um poder que é infinito e indescritível porque está além de tudo isso. Que Deus não é encontrado "lá fora", porque não há "lá fora". Um Deus que não é uma criatura sobrenatural estática, mas a essência do processo criativo do universo. Um Deus que não está sentado em uma nuvem observando nosso cotidiano e interferindo se conveniente. Mas sim um Deus que é a força criadora imanente ao universo. Um Deus que é as leis científicas que regem o cosmos: incluindo a aleatoriedade e incerteza da mecânica quântica e da evolução.

Está claro que nossa concepção de Deus está gradualmente evoluindo e tomando novas formas. Não há dúvidas de que neste novo milênio haverá ainda mais mudanças. Mas, qualquer que seja a concepção que tivermos, Deus

está acima de tudo o que dizem (17:43)*.


* No original: "Free is he and high above all that they say! Far above beyond measure!". Na versão da Sahih International: "Exalted is He and high above what they say by great sublimity". Hayek traduz para o português na seguinte forma: "Glorificado e sublimemente exaltado seja Ele, por tudo quanto blasfemam!".

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