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terça-feira, 20 de novembro de 2018

A propósito do véu - I


O texto a seguir é do kuwaitiano Khaled Abou El Fadl, professor de Direito na Universidade da Califórnia, acerca de uma velha polêmica no mundo muçulmano: a obrigatoriedade ou não do véu para as mulheres. A fatwa -parecer jurídico- do jurista, à luz de um minucioso estudo etimológico do texto corânico, fala da importância da contextualização histórica e cultural.

Dividimos o texto em duas partes. Na continuação disponibilizaremos o link original. A imagem que ilustra o post é de María Evelia Santana Concepción.

Fatwa sobre o hijab

Khaled Abou El Fadl

Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.

A paz seja convosco. Recentemente recebi inúmeras mensagens de mulheres muçulmanas acerca do uso do véu, comumente conhecido como "hijab". Sentindo o crescimento da hostilidade contra muçulmanos no Ocidente, muitas dessas mulheres perguntam se NÃO COBRIR os cabelos seria permitido na Sharia. Muitas expressam preocupação quanto a sua segurança pessoal ou não querem aumentar a inquietação das pessoas diante do que lhes parece estranho ou exótico. Mais que isso, geralmente essas perguntas indicam que o uso do véu se tornou fator de algum tipo de crise, espiritual ou não. Antigamente eu respondia a esses questionamentos individualmente conforme fossem chegando. Além disso, em torno de seis meses atrás eu já havia emitido uma fatwa sobre o uso do hijab (ver abaixo). Contudo, depois da eleição de Donald Trump e da crescente hostilidade islamófoba, decidi tratar esse assunto de forma mais pública e extensiva, e peço a Deus que me oriente e perdoe meus eventuais erros.

Em minha opinião, é um erro para a mulher muçulmana continuar a usar o véu ou o hijab se ao fazê-lo atrai para si atenção indevida ou se se coloca em risco de qualquer natureza, ou ainda se isso for uma barreira para o testemunho da religião e da verdade da mensagem islâmica no contato com não-muçulmanos. Quando falamos em termos de ādāb, isto é, ética prática [i.e. etiqueta, boas maneiras], os hábitos e costumes das pessoas são frequentemente decisivos para definir o que é bom e desejável e diferenciá-lo daquilo que não. É como se costuma definir al-maʿrūf em oposição a al-munkar. Ma'ruf é o que as pessoas aceitam como bom, a partir de experiências práticas e pragmáticas, enquanto munkar é algo considerado socialmente inaceitável e indesejável. Como em todas as questões de ética prática, debate-se sempre qual a base empírica necessária para definir algo como desejável ou indesejável. Nesse sentido, o que seria mais relevante: as práticas e costumes de muçulmanos de uma região, nação ou agrupamento social em específico? Ou da humanidade como um todo? Ou de muçulmanos e não-muçulmanos igualmente em determinada região ou nação? Como traçar os limites adequados?

O Corão se refere à vestimenta e à modéstia das mulheres primariamente em duas ocasiões distintas:

1) Na primeira dessas ocasiões, assim diz: "Dize às crentes que recatem os seus olhares, conservem os seus pudores e não mostrem os seus atrativos [zīnah], além dos que (normalmente) aparecem; que cubram o colo [juyūb] com seus véus [khumur] e não mostrem os seus atrativos [zīnah], a não ser aos seus esposos, seus pais, seus sogros, seus filhos, seus enteados, seus irmãos, seus sobrinhos, às mulheres suas servas, seus criados isentos das necessidades sexuais, ou às crianças que não discernem a nudez das mulheres; que não agitem os seus pés, para que não chamem a atenção sobre seus atrativos ocultos [zīnatihinna]. Ó crentes, voltai-vos todos, arrependidos, a Allah, a fim de que vos salveis!" (24:31, v. Hayek).

2) Na segunda dessas ocasiões, o Quran proclama: "Ó Profeta, dize às tuas esposas, tuas filhas e às mulheres dos crentes que (quando saírem) se cubram com as suas mantas [jalābīb]; isso é mais conveniente, para que se distingam das demais e não sejam molestadas; sabei que Allah é Indulgente, Misericordiosíssimo" (33:59, v. Hayek).

No primeiro verso, a questão é saber o que é khimār (pl. khumur) e o que deve cobrir. Muitos eruditos argumentam que o khimār por definição é uma peça de pano que cobre o corpo inteiro da mulher e desenhado sobre o rosto, ou seja, cobrindo o corpo inteiro da mulher em um véu. Já outros afirmam que o khimār é uma peça de pano que cobre o cabelo e o corpo inteiro, com exceção do rosto. Porém, em minha opinião, e Deus sabe mais, ambas as escolas de pensamento -a que diz que o khimār cobre o rosto e a que diz que cobre o cabelo e não a rosto- são "a-históricas" ao presumir a existência de um costume que não foi provado. Simplesmente não há evidências de que o khimār cobria o rosto ou  de que cobria o cabelo na Hejaz pré-islâmica. A única coisa que o versículo nos permite afirmar conclusivamente é que as mulheres muçulmanas são chamadas a colocar uma peça de pano (khimār) sobre o juyūb (colo, seios)- se cobrindo o cabelo ou o rosto, não sabemos. Em outras palavras, o Corão nesse versículo chama as mulheres a cobrirem seus seios. Tudo além disso requer uma extensa pesquisa das práticas sociais do uso do khimār na época da revelação, e as evidências históricas são muito mais diversificadas e complexas do que muitos estudiosos contemporâneos admitem.

O tema do khimār está relacionado ao tema do zīnah. O primeiro versículo corânico acima começa instruindo as mulheres muçulmanas a não revelarem seu zīnah e então diz que o khimār deve ser colocado sobre o seio. O ponto crítico aqui é aquilo que é considerado contrário ao costume de baixar o olhar, de ser modesta, e de não expor zīnah. Colocado de outra forma, o Corão estabelece um paradigma de modéstia com a instrução de baixar o olhar e então especifica que modéstia implica em não revelar zīnah senão para aquelas pessoas cujo relacionamento é aceitável, como marido, pai e filho, e isso tudo antes de afirmar que o khimār deveria ser colocado sobre o seio.

A referência a agitar (ou pisar) os pés provavelmente se refere a um específico contexto histórico. Há relatos de que na época da revelação as mulheres de má reputação usavam tornozeleiras que faziam barulho quando andavam. Aparentemente, era uma forma de anunciar seus serviços. Se tal relato é mesmo histórico ou não, a referência à agitação de pés e a não revelar os atributos diz respeito a modéstia e a não trazer atenção indesejada para si.

A maioria dos estudiosos contemporâneos NÃO DISTINGUEM entre o tema do 'awrah (partes do corpo que devem ser cobertas) e zīnah. Em outras palavras, eles entendem que zīnah é igual ou a mesma que coisa que expor partes privadas e que 'awrah é idêntico a zīnah. A palavra zīnah é mencionada no Corão em dois contexto relevantes: 24:31 e 24:58- em ambos momentos isso denota algo privado ou íntimo. Na literatura dos ahadith, o termo 'awrah se refere a algo que é pessoal e que deve ser mantido em segredo ou escondido. Há um hadith que descreve as mulheres em geral como ʿawrah; a autenticidade, conotação e contexto desse hadith requereria uma longa discussão. Na literatura da jurisprudência, ʿawrah se refere a partes privadas que devem estar cobertas e não reveladas. Como mencionado, os estudiosos contemporâneos costumam não diferenciar entre ʿawrah e zīnah. Em outras palavras, eles leem a referência corânica a zīnah como uma referência a ʿawrah das mulheres perante homens estranhos. Essa omissão é injustificada. Zīnah é o que alguém, homem ou mulher, utiliza para se adornar ou deixa à vista para atrair atenção. Em minha opinião está claro que o que é considerado zīnah, isto é, os ornamentos, é uma questão de ética aplicada- ou seja, é diferente conforme o local e a época. O que é considerado imoral em alguma parte da África pode ser considerado totalmente diferente na Mongólia. Em essência, o Corão aconselha contra a falta de modéstia quanto à aparência física. Não há evidência de que mostrar o cabelo seja por definição parte do zīnah [ornamento] de uma mulher. Dependendo do lugar e do contexto, uma mulher pode estar sendo modesta justamente por não cobrir o cabelo, e a recíproca é verdadeira. Uma mulher pode cobrir o cabelo mas ainda assim não ser modesta, por estar mostrando seu zīnah (ornamentos). Em muitos sentidos, para mim está claro que o Corão repete e reafirma um antigo comando bíblico de baixar os olhos, ser modesto/a, e de evitar exibicionismo e vaidade.

Quanto ao segundo versículo, a terminologia em árabe é baixar o jilbāb (vestuário exterior) e cobrir as partes baixas do corpo. O jilbāb é qualquer vestimenta utilizada por homens ou mulheres que cubra partes não especificadas do corpo (o tradutor Abdel Haleem corretamente aponta que a expressão utilizada no Corão significa "descer" a vestimenta [isto é, cobrir as partes baixas do corpo], e não "enrolá-la" como outros tradutores dizem). O contexto desse verso indica que a revelação corânica se dirige a um específico problema social da época. Isso fica claro no versículo seguinte. Como se vê em 33:60, há uma advertência contra os homens que causam problemas (ou seja, os molestadores e assediadores), no sentido de que se os hipócritas, pervertidos e propagadores de boatos de Medina não se emendarem poderão ser expulsos da cidade.

(CONTINUA)


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