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sexta-feira, 20 de abril de 2018

Meus encontros com o xiismo - II


Publicamos agora a segunda parte do texto anterior, acerca do xiismo no Sudeste Asiático e a necessidade de respeito à pluralidade dentro da comunidade muçulmana. O link para o texto original -de onde foi retirada a imagem que ilustra o post- está ao final.


Meus encontros com o xiismo: as lições que aprendi (segunda parte)

Mohamed Imran Mohamed Taib

Xiismo e os malaios

À parte os assuntos históricos e filosóficos, eu também estudava literatura malaia. Foi outra janela pela qual comecei a descobrir o pensamento xiita. De fato, percebi que seria uma traição histórica negar o papel que os xiitas desempenharam no Sudeste Asiático. Um dos antigos textos malaios clássicos é o "Hikayat Muhammad Hanafiyyah", do século XVI, e narra o assassinato de Ali e o subsequente martírio de Hussein pelas forças de Yazid em Karbala. Essa antiga presença xiita no mundo malaio também pode ser encontrada em registros arqueológicos e linguísticos, alguns dos quais debatidos em duas obras recém-editadas: "Shi’ism in South East Asia" de Chiara Formichi e Michael Feener e "Sejarah dan Budaya Syiah di Asia Tenggara" de Dicky Sofyan.

Mas apesar da presença xiita estar registrada há muito tempo, eu só fui propriamente apresentado aos xiitas malaios em 2009. Eu já tinha, é claro, interagido com intelectuais de base xiita, como o Dr. Asghar Ali e o professor Abdulaziz Sachedina. Também apreciei a leitura de pensadores como Ali Shariati, Abdolkarim Soroush e Muhammad Husayn Tabataba'i. Também tive contato com os trabalhos de Lalaluddin Rakhmat, progressista xiita indonésio.

Em 2009 eu tive a oportunidade de acompanhar o professor Sachedina (convidado do Islamic Religious Council de Singapura) à Jaafri Muslim Association (JMA), uma organização xiita local. Até o momento meu contato tinha sido com xiitas do sudeste asiático (vindos a Singapura como mercadores durante o período colonial), mas foi na JMA que conheci xiitas propriamente malaios, tornados xiitas após a Revolução Iraniana. Eu sabia de sua existência, mas foi a primeira vez em que conversei com eles. Nada extraordinário aconteceu, claro, mas meu medo dos xiitas diminuiu. Foi meu primeiro passo rumo ao "Outro", o xiita malaio. Em essência foi um grande momento.

Dois anos depois, aceitei o convite de um amigo para participar das celebrações da Ashura (10 de Muharram) realizadas por uma organização xiita malaia, Himpunan Belia Islam (Muslim Youth Assembly/ HBI), situada no prédio anexo à Mesquita do Sultão. O público era basicamente formado por jovens xiitas, mas o evento contou com o diálogo entre Ustaz Rosli da comunidade xiita e o professor Syed Farid Alatas, dos sunitas. Esse foi meu primeiro diálogo sunita-xiita em Singapura, e achei o encontro respeitoso e educativo.

Para mim, Ashura era apenas o ritual religioso de jejum, onde se consome o prato [espécie de mingau, N.T.] "bubur Ashura (Asyura)"- então pela primeira vez compreendi que algo violento e trágico ocorrera nesta data: um evento que nunca era falado ou discutido pelos muçulmanos em geral. Foi um evento muito doloroso para ser relembrado, e por outro lado deliberadamente negligenciado para esconder qualquer responsabilidade por parte dos vencedores Omíadas (aceitos como um Califado legítimo pelos sunnis) na morte do neto do Profeta e no massacre de 70 de seus seguidores, incluindo mulheres e crianças, em Karbala. Meu interesse por esse acontecimento foi aumentando, e nunca mais eu veria Ashura com os mesmos olhos novamente. É um momento de lamentação, não de celebração.

Amizade com os xiitas

Desde então, comecei a travar contato com xiitas locais e fomos desenvolvendo relações de amizade. Para mim, os xiitas não são mais "os outros"- objeto de suspeita e olhares desconfiados. Conhecer os xiitas pessoalmente eliminou os equívocos que eu mantinha. Pude finalmente aprender sobre o xiismo a partir da própria fonte, o que é fundamental para superar a ignorância e preconceito que circula entre os muçulmanos sunitas de Singapura, infelizmente culpa da própria comunidade religiosa.

Nesse mesmo ano escutei dois membros de instituições islâmicas locais falando sobre xiismo de forma tipicamente equivocada. Um dizia que os xiitas incluíam o nome de Ali na shahada (testemuho de fé), enquanto o outro afirmava que os xiitas possuem um Corão diferente. Isso é falso: os xiitas têm o mesmo Corão que os demais muçulmanos. Quanto à shahada, é verdade que se pode fazer a inclusão do verso "Aliyun Waliyullah wasiyur Rasulullah" (Ali é o wali/ amigo de Allah e sucessor do Profeta), mas apenas para expressar o pacto de aliança com Ali e os Ahlul Bayt (a família do Profeta); nada mas que isso. Inclusive a maioria dos clérigos xiitas diz que tal verso adicional não é obrigatório. Não há nada de herético nisso, no fim das contas, apenas situa o contexto histórico do xiismo.

Normalizando a diferença

É importante notar que o contato com a "diferença" é fundamental para desenvolvermos uma relação aberta e amigável com o "Outro". Minha própria experiência me ensinou a aceitar as diferenças ao invés de escondê-las. Normalizar as diferenças é o único jeito possível de cultivarmos a diversidade. Ao contrário, suprimi-las apenas criará uma falsa ilusão de harmonia quando, na verdade, o que há é apenas a imposição de uma visão dominante e a submissão da minoria. Nesses casos, qualquer expressão de diferença em público será considerada "desestabilizadora".

Logo cheguei à conclusão de que cabe à maioria sunita dar o primeiro passo e estender a mão para a minoria xiita entre nós. Como somos majoritários, devemos garantir que os direitos dos irmãos e irmãs xiitas estejam garantidos, de modo que se sintam seguros e não discriminados, podendo ser quem são sem medo ou risco de represálias, cidadãos iguais e muçulmanos como nós. Mas inicialmente é preciso que construamos pontes para que sunitas e xiitas possam interagir em lugares seguros. Nesse sentido, a criação do Muslim Collective Singapore (MCollective) em 2016 -uma rede de jovens muçulmanos interessados na construção de relações intra-fé- é um começo promissor. Teve início com a realização de um iftar intra-fé durante o Ramadã. Também organizou fóruns onde jovens de diversas tradições muçulmanas se reuniam para conhecer as práticas e visões alheias. Foi em uma dessas sessões que tive minha primeira experiência de orar ao lado de um irmão xiita. Senti-me bem. Encarávamos a mesma qiblah [direção de Meca, para a qual os muçulmanos oram].

Removendo o medo

Vale a pena frisar este aspecto: temos a tendência de transformar em exótico ou assustador aquilo que não conhecemos. Um ano atrás circulava um vídeo mostrando a comemoração de Ashura de jovens xiitas em Singapura, onde oravam a Ali e batiam nos próprios peitos. Esse vídeo rapidamente se tornou viral, supostamente sendo prova das práticas "desviadas" dos xiitas. Isso apenas mostrava a ignorância dos sunitas sobre o porquê dos xiitas realizarem esse ritual, e sua amnésia histórica sobre o que aconteceu em Karbala. É exatamente igual ao medo que não-muçulmanos desenvolveram de quem usa véu ou expressões árabes. Isso será superado com vozes esclarecidas que venham a público ensinar e combater o medo, mas onde estão tais vozes? Por que não avançam? O que pode ser feito para ampliar seu alcance?

Eu acredito que haja pessoas inteligentes e razoáveis, dentro da comunidade, que precisam apenas de uma boa mensagem das autoridades religiosas. Alguns meses atrás veio a informação de que um singapurense queria viajar até a Síria para matar xiitas "desviados". É preocupante que a retórica anti-xiita chegue a um estágio crítico onde se passa para a violência. Está mais que na hora de percebermos o quão o sectarismo é perigoso no contexto de uma sociedade complexa como Singapura. Mais que isso, está na hora de admitirmos a diversidade dentro da comunidade muçulmana e parar de fingir que somos todos idênticos e monolíticos. Se a diversidade é natural, devemos educar as pessoas a aceitarem isso, e não empurrar formatos e padrões que geram medo e preconceito contra aqueles que seguem outras tradições.

Tornar a diversidade normal é, portanto, crucial- assim como remover o medo e criar pontes. Quanto mais suprimimos a diversidade, mais perpetuamos preconceito e ignorância. Aprendemos isso no diálogo interreligioso que temos promovido, como um meio de normalizar as diferenças e estimular a interação e compreensão entre as diversas religiões. É hora de fazer isso dentro do próprio Islã.

Tomar uma posição pela diversidade

Eu me sinto um felizardo por ter conseguido compreender a diversidade dentro do Islã. Como narrei acima isso começou com o conhecimento da história, o que acabou me levando a uma nova forma de ver. Mais tarde, a interação direta com os próprios xiitas e os laços de amizade adquiridos conseguiram eliminar meus preconceitos. Para mim a lição que importa é esta: precisamos enfrentar o problema da "desumanização" daqueles que consideramos diferentes. Nesse processo, aprendemos mais a respeito de nós próprios, enquanto buscamos nossa humanidade em comum "nos" e "através dos" outros.

Hoje, já não fico calado quando ouço mentiras sobre os xiitas. É o mínimo que posso fazer, enquanto companheiro muçulmano que respeita os irmãos e irmãs xiitas e os reconhece como membros da mesma ummah. Não deve haver sectarismo nem em Singapura nem em qualquer lugar do mundo, e espero que mais vozes se manifestem e guiem as novas gerações de jovens muçulmanos, promovendo a diversidade e mantendo a vigilância contra a ascensão do discurso extremista e divisionista que promove um versão supremacista, exclusivista e monolítica do Islã.



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