Páginas

sábado, 20 de janeiro de 2018

Meus encontros com o xiismo - I


O texto que trazemos abaixo é um interessante relato sobre desconstrução de conceitos, a partir da experiência de um muçulmano malaio e sua aproximação com o xiismo. Como é extenso, houvemos por bem publicá-lo em duas partes. O link para o texto original será disponibilizado na continuação.

Meus encontros com o xiismo: as lições que aprendi

Mohamed Imran Mohamed Taib

Tendo nascido na tradição sunni, eu lamentava conhecer pouco de xiismo. Muito pouco, ou mesmo nada, foi ensinado de xiismo na minha formação religiosa primária. Esse enfoque -o de acreditar que há apenas um único Islã: a versão sunita- teria consequências mais tarde. Eu cresci em um período de feroz "salafização" do discurso islâmico. Muita coisa aconteceu no cenário geopolítico nos anos 80, principalmente após a Revolução Iraniana e a reação liderada pela Arábia Saudita. Dada a ausência de ensinamentos sobre o xiismo dentro da tradição muçulmana sunita, ideias anti-xiitas foram facilmente propagadas. Eu, mesmo não sendo anti-xiita, tinha desconfianças sobre esse ramo: parecia estranho, de fora, e mesmo esquisito em relação ao Islã "principal".

Só desenvolvi uma nova perspectiva quando me aprofundei na história e filosofia islâmicas, repletas de ideias diversificadas e controversas em relação ao que chamamos de "tradição". O xiismo, como outros movimentos teológicos nos primórdios (por exemplo o Jabariyah, o Qadariyah, o Mu’tazila etc.) nasceu no contexto sociopolítico da crise de liderança após a morte do Profeta Muhammad. Conhecer essa parte da história acaba com qualquer ilusão de "passado perfeito".

Desmistificando a história

Essa foi minha primeira lição de desmistificação histórica. Duas obras foram profundamente influentes para mim: "Methodology in Islamic History" de Fazlur Rahman e "A History of Islamic Philosophy" de Majid Fakhry. Antes disso, a história muçulmana que me foi ensinada, em minha formação religiosa, se deu nas bases do discurso triunfalista sunita consolidado nos três primeiros séculos do Islã. Foi nessa época que, conforme explica Fazlur Rahman, o termo Ahlus Sunnah wal Jama’ah ("Povo da Tradição [Profética] e da Comunidade [/da Maioria]", daí "sunita") se tornou popular. Isto é, me ensinaram a ortodoxia, mas não o surgimento da ortodoxia. Essa distinção é fundamental.

Em grande parte da minha formação religiosa, a história do Islã era apresentada como um "período glorioso". O período dos Califas Rashidun (os "Bem-Guiados", a saber- Abu Bakr, Umar, Uthman e Ali) era idealizado como o "Período de Ouro", também conhecido na versão sunita da história como o período dos salafs [antepassados, ancestrais], isto é, as três primeiras gerações, englobando o Profeta, seus companheiros e companheiros dos companheiros. É possível que o modernismo islâmico que emergiu ao longo do século XIX tenha levado a essa visão. Havia então a necessidade de resgatar a história do mundo muçulmano, vilipendiado pelo colonialismo. Dizia-se, portanto, de acordo com essa leitura, que a história era perfeita no tempo do Profeta, e se deteriorou com o tempo. Os modernistas pretendiam resgatar essa glória.

Logo, era preciso retornar ao "Período de Ouro". A solução para todos os problemas atuais está no passado. E com a emergência do Islamismo (uma forma politizada de Islã), o passado não era apenas perfeito, mas também fossilizado de uma forma que deveria ser implementada no presente. A ideia da "lei da sharia" (tal como interpretada pelos islamistas) é um exemplo. Eu cresci nessa visão com a expansão do Islamismo no mundo malaio. Era conhecido como o movimento dakwah. Em pouco tempo, o Islã se tornou uma ideologia política.

E, enquanto ideologia, se esquivava das complexidades, ambiguidades e contradições. A simples ideia de "Islã" era considerada como um brado para mobilizar todos os muçulmanos. E também se tornara uma identidade política, que tornava necessário definir o "Islã" contra aquilo que "não era Islã". Assim como na política, onde há aliados e adversários. Tais adversários, a propósito, poderiam ser externos ou internos. Enquanto a ameaça externa ao Islã era óbvia (secularismo, judeus, cristãos e o abrangente "Ocidente"), a ameaça interna era amorfa e, por isso, mais perigosa. Eles eram, como eu ouvia sempre, "bagai gunting di balik lipatan" ("como tesouras nas dobras dos panos"), uma frase malaia que significava ameaças ocultas, que podem te furar sem você perceber- exatamente como os xiitas pareciam ser!

Compreendendo as divisões dentro do Islã

Voltando à ideia do Califado Rashidun, percebi mais tarde que, dos quatro califas do período, três foram assassinados. Além disso, a maior cisão entre os primeiros muçulmanos se deu nessa mesma época, com a Batalha de Siffin em 657 a.C., durante o governo do califa Ali. Ergueram-se aí os proto-xiitas (conhecidos como o Partido de Ali), assim como o primeiro maior grupo extremista dentro do Islã, os Kharijitas, "Aqueles que saíram". As sementes da divisão, contudo, já tinham sido semeadas há muito mais tempo durante o controverso governo do terceiro califa, Uthman. Tantos problemas para um dito "Período de Ouro"! Uma obra fundamental que me foi apresentada, pelo professor Syed Hussein Alatas, foi "Fitna al-Kubra" ("A Grande Divisão"), escrita pelo filósofo egípcio do século XIX Taha Husayn. Meu entendimento sobre os primeiros anos da história muçulmana nunca mais foi o mesmo novamente.

Foi meu estudo sobre as divisões no Islã primitivo que me levou a apreciar a diversidade dentro do Islã. Meus esforços em filosofia e minha exposição ao pensamento sociológico me levaram a identificar o nascimento de seitas e escolas de pensamento dentro do Islã como situados primariamente no contexto social, econômico e político do período histórico em questão. Em pouco tempo fui me tornando menos dogmático em minha compreensão do Islã. A minha própria adesão a uma forma em particular- o sunismo e, em específico, a escola Shafi'i, conforme é prevalente no mundo malaio- foi condicionada histórica e sociologicamente, de modo que se eu nascesse em outro lugar e em outra época, eu teria sido muçulmano de um jeito totalmente diferente. E é importante frisar: não escolhemos onde nascemos.

Eu poderia ter sido xiita se tivesse nascido no Irã de hoje, ou provavelmente um mutazilita caso nascesse na Bagdá do século IX sob o peso do governo abássida. Então perguntei a mim mesmo: por que insistir em uma abordagem sectária e acreditar que o meu Islã é o único correto e que todas as demais interpretações e escolas estão erradas? Estaria eu -me perguntei- adorando Deus ou adorando minha própria interpretação da religião de Deus?

Aos poucos, comecei a ver o Islã mais como uma manifestação da misericórdia divina na maré da História, se revelando através de diferentes formas e expressões- todas apontando para o Uno. Meu dever é compreender, na melhor forma possível, essa diversidade dentro do Islã, e, sendo uma manifestação da sabedoria e misericórdia divinas, devo abraçar isso. Afinal, como diz o adágio, diferença de opiniões dentro de uma comunidade é uma benção ("ikhtilaf ummati rahmah").

(CONTINUA)

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...