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sábado, 15 de julho de 2017

A mística que escandaliza os ortodoxos


O fragmento abaixo, sobre o sufismo, é do acadêmico holandês Peter Robert Demant (não confundir com o escritor russo Peter Demant). A imagem que ilustra o post é o santuário do mestre sufi Abdul Qadir al-Gilani (1078-1166), em Bagdá, Iraque.

O sufismo
Peter R. Demant

A ortodoxia que hoje em dia constitui a versão normativa do islã conquistou tal posição gradualmente, mediante lutas, muitas vezes radicais, contra o que originalmente era uma religião mais pluralista.  Ao longo de sua história, o islã desenvolveu uma variedade de estilos religiosos que constituíam opções para os fiéis. Uma dessas era o misticismo movido pelo “amor a Deus”, o qual, carregado de influências monásticas cristãs e gnósticas, buscava a reunião da alma com o Criador. A ênfase do islã na distância entre Deus e suas criaturas (associada à ausência de tendências ascéticas) não parecia predispô-lo à meditação. Contudo, havia sempre indivíduos a quem uma religião primariamente ritual e social não satisfazia. Tentativas para estabelecer um laço mais íntimo e individual com Deus apareceram desde o século VIII. Místicos desenvolveram uma gama de técnicas espirituais para alcançar a experiência da proximidade e da união com Ele (a mais conhecida é o dhikr, lembrança, que consiste na repetição dos nomes divinos para alcançar  um estado de êxtase).

Contudo, as expressões de certos místicos afirmando sua identidade com o divino logo escandalizaram ortodoxos mais preconceituosos, que as consideraram como blasfêmia e, por tanto (num contexto de não diferenciação entre religião e política), desafio à autoridade. Isso chegou a provocar fortes perseguições: em 922 o místico al-Hallaj foi martirizado. Após esse evento os místicos se voltaram a formas mais sóbrias e cautelosas. No entanto, a mística em si não morreu, recebendo novos impulsos. No século XI, por exemplo, o neoplatonista Ibn Sina (Avicenna) e, um século depois, Ibn al-Arabi, baseados em visões místicas, desenvolveram a wahdat al-wujud (unidade da realidade), teoria herética e panteísta sobre emanações divinas sustentando o cosmos inteiro.

A ortodoxia da xaria [sharia] acabou por integrar a mística numa posição minoritária, submetida à teologia oficial na síntese operada por al-Ashari. Mas, nas circunstâncias turbulentas que vigoravam desde o século XIII, cada vez mais muçulmanos buscaram um abrigo na sombra de certos mestres, místicos cuja reputação de santidade e de poderes milagrosos atraíam seguidores. Foi a origem de escolas em torno de líderes religiosos místicos, que se chamavam sufis - talvez por causa de suas vestimentas de lã (suf). Os sufis se tornaram populares entre muçulmanos não árabes, principalmente entre persas e turcos recém-convertidos. Seus seguidores costumavam se encontrar (e em parte, moravam) em prédios especiais, os khanqas. Entre os berberes da África do Norte, os túmulos de tais santos se tornaram locais de veneração e peregrinação - desaprovados, é claro, por muçulmanos mais rígidos. Os sufis entregaram suas doutrinas esotéricas e exercícios secretos aos discípulos. Desenvolviam-se dessa maneira dinastias ou linhagens: no decorrer do tempo, os seguidores do caminho (tariq) de determinado mestre se organizavam em irmandades separadas, os  [as] tariqas, marcadas pelo relacionamento espiritual entre guia e aluno. Algumas das ordens sufis mais conhecidas são os naqshibandis, os bektashis, a qadiriyya, a tijaniyya e a sanusiyya. Sua ortodoxia, entretanto, sempre causou suspeitas: existia uma tensão permanente entre as irmandades próximas do islã popular, com suas “aberrações” supersticiosas, e o alto islã, puritano e menos emocional, que periodicamente inspirava movimentos de “limpeza”. Mas esse campo de tensão não foi sempre antagônico: embora as irmandades sufis se mantivessem em geral longe da política, houve também casos em que elas se politizaram e se tornaram reformistas militantes, às vezes violentas. Em outros casos, como na Turquia atual, elas influenciam a política nos bastidores. O espectro da atuação mística no mundo muçulmano é, portanto, extremamente amplo. Nos últimos séculos, tais ordens sufis têm representado um papel absolutamente central na expansão do islã, particularmente na Ásia central, Indonésia e África. Sem seu impacto, não se explicaria a recente retomada de crescimento do islã.

(Fonte: DEMANT, Peter R. "O Mundo Muçulmano". São Paulo: Contexto.)

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