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sexta-feira, 16 de junho de 2017

Fundamentalismo e integrismo


O texto abaixo, conforme o link original, foi extraído da edição espanhola do livro de ensaios "A Passo de Caranguejo", do italiano Umberto Eco (1932-2016). Trata de conceitos como fundamentalismo, integrismo e intolerância e de suas diferenças e similaridades. A imagem que ilustra o post é uma marcha de apoiadores do "Estado Islâmico" (Daesh) em Mosul, Iraque, em junho de 2014.

Fundamentalismo e integrismo

Umberto Eco

Nas últimas semanas tem se falado muito sobre o fundamentalismo islâmico, de modo que se esquece que há também um fundamentalismo cristão, especialmente nos Estados Unidos. Dirão então que os fundamentalistas cristãos fazem programas de televisão aos domingos, enquanto os fundamentalistas islâmicos derrubam as Torres Gêmeas- portanto devemos nos preocupar é com esses últimos.

Bem, há que perguntar: eles agem assim por ser fundamentalistas? Por ser integristas? Ou por que são terroristas? E, da mesma forma que há muçulmanos que não são árabes e árabes que não são muçulmanos, haveria também fundamentalistas que não são terroristas? Ou que não são integristas? No geral, fundamentalismo e integrismo são considerados conceitos muito próximos entre si, como duas formas de intolerância. O que nos leva a pensar que todos os fundamentalistas são integristas e, portanto, intolerantes e, portanto, terroristas. Ainda que assim fosse isso não quer dizer que todos os intolerantes sejam fundamentalistas e integristas, nem que todos os terroristas sejam fundamentalistas (caso das Brigadas Vermelhas, e dos terroristas bascos).

De um ponto de vista histórico, o fundamentalismo está vinculado à interpretação de um livro sagrado. O fundamentalismo protestante dos EUA no século XIX (que existe ainda hoje em dia) se caracterizou pela interpretação literal das Escrituras, principalmente no que se refere a questões de cosmologia; assim rechaça toda forma de educação que enfraqueça a fé no texto bíblico, como ocorre com o darwinismo. Do mesmo modo, o fundamentalismo islâmico está vinculado à letra do livro sagrado.

O fundamentalismo é sempre intolerante? Podemos imaginar uma seita fundamentalista que acredite que seus eleitos têm o privilégio da interpretação correta do livro sagrado, mas sem que com isso queira fazer algum tipo de proselitismo e nem obrigar os demais a compartilhar da mesma crença, ou ainda nem lutar para conseguir uma sociedade baseada em tais crenças.

Por outro lado, entendo o integrismo como uma postura religiosa e política pela qual os princípios religiosos pessoais têm que se converter ao mesmo tempo em modelo da vida política e fonte das leis do Estado.

Ao passo em que o fundamentalismo é a princípio conservador, há integrismos que se colocam como progressistas e revolucionários. Há movimentos católicos integristas que não são fundamentalistas, que lutam por uma sociedade totalmente inspirada nos princípios religiosos mas sem impor uma interpretação literal das Escrituras, e dispostos a aceitar uma teologia à maneira de Teilhard de Chardin. Mas há também formas extremas de integrismo que se convertem em regimes teocráticos, e assim se assentam no fundamentalismo. Parece o caso do regime dos talibãs com suas escolas corânicas.

Em todas as formas de integrismo há certa dose de intolerância em relação a quem não compartilha das mesmas ideias, e essa dose chega ao ponto máximo nos fundamentalismos e integrismos teocráticos. Um regime teocrático é inevitavelmente totalitário, mas nem todos os regimes totalitários são teocráticos (a não ser no sentido em que substituam uma religião por uma filosofia dominante, como o nazismo ou o comunismo soviético).

E o racismo? É curioso, mas grande parte do integrismo islâmico, apesar de anti-ocidental e antissemita, não pode ser considerado racista da mesma forma que o nazismo, haja vista que odeia um único povo (os judeus) ou um Estado que não representa seu povo (os EUA), mas não se reconhece, ele mesmo, como um "povo eleito", e sim que eleitos são os seguidores de sua religião, ainda que sejam de povos distintos. O racismo nazista era sem dúvida totalitário, mas não havia nada de fundamentalista na doutrina da raça (substituía o livro sagrado pela pseudociência ariana).

E a intolerância? Quais suas semelhanças e diferenças com o fundamentalismo, o integrismo, o racismo, a teocracia e o totalitarismo? Há formas de intolerância não-racista (como a a perseguição aos hereges ou a intolerência das ditaduras contra seus opositores), há formas de racismo não-intolerante ("não tenho nada contra negros, se trabalham e pagam suas contas podem morar aqui, mas não gostaria que minha filha casasse com um deles"), e há formas de intolerância e racismo difundidos mesmo entre pessoas que se consideram nem teocráticas, nem fundamentalistas e nem integristas.

Fundamentalismo, integrismo e racismo pseudocientífico são posturas teóricas que pressupõe uma doutrina. A intolerância e o racismo popular são anteriores a qualquer doutrina. Têm raízes biológicas, se manifestam entre os animais nas disputas territoriais e se baseiam em reações emotivas (não aceitamos aqueles que são diferentes de nós).

Pode-se dizer que estas notas não ajudaram a clarear suas ideias, e que apenas ajudaram a confundir ainda mais. Mas a confusão não é minha, e sim porque estamos falando justamente de ideias confusas, e é bom as considerarmos assim para melhor tentarmos compreendê-las.


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