Páginas

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O futuro do Iraque pós-Sistani


O texto abaixo faz conjeturas acerca da inevitavelmente próxima -haja vista a idade avançada do clérigo- sucessão de al-Sistani, o maior expoente religioso iraquiano. Trata, ainda, da disputa (de claros contornos geopolíticos) entre o xiismo iraquiano e o iraniano, bem como do interesse deste último em obter primazia no país vizinho.

O Iraque pós-Sistani, o Irã e o futuro do Islã xiita

Hayder al-Khoei

Durante uma recente viagem à minha cidade natal, Najaf, no sul do Iraque, eu me deparei com um livro intitulado "Meu líder Khamenei" na biblioteca pessoal de um clérigo, estudante do seminário islâmico (Hawza 'Ilmiyya Najaf). Ele havia pego esse livro em uma livraria próxima ao santuário do Imam Ali, onde o primeiro imam xiita está enterrado. É um destino popular entre os peregrinos muçulmanos- especialmente xiitas- do mundo inteiro.

Najaf, que está a 100 milhas ao sul de Bagdá, é o coração do Islã xiita. Lar do seminário estabelecido no século XI e assento do Marjarato [Marja’iyya]- a influente instituição religiosa liderada pelos Aiatolás.

O aspecto fascinante no livro não era o fato de ter sido publicado em Najaf (por uma chamada Fundação do Islã Puro) mas sim porque vinha com o poderoso aval, já na página de abertura, de ninguém menos do que a grande autoridade do Islã xiita, o Grande Aiatolá Ali al-Sistani. De acordo com esse livro, Sistani teria dito:

Sempre sigam Sayyid Khamenei e apoiem Wilayat al-Faqih. Hoje, a reputação do Islã depende da reputação e da dignidade da República Islâmica [do Irã], e a dignidade da República Islâmica depende da proteção à dignidade de Sayyid Khamenei.

Essa fala é falsa. Sistani, como a grande maioria dos clérigos xiitas situados em Najaf, é bem conhecido por sua oposição a Wilayat al-Faqih. Trata-se do modelo iraniano de teocracia que compele o clericato xiita a assumir o poder baseado na interpretação jurisprudencial do Islã que o Aiatolá Khomeini colocou em prática no Irã após a Revolução Islâmica de 1979.

Sistani não apenas rejeitou esse dogma, como explicitamente clamou por um "Estado civil" no Iraque, ao invés de um religioso. É uma posição teológica baseada em uma interpretação ortodoxa do Islã xiita que nunca será compatível com a teocracia. Apesar das fortes diferenças de opinião entre Tehran e Najaf, o livro mencionado acima representa apenas uma das muitas campanhas de propaganda pró-Irã que têm sido disseminadas em Najaf.

Além da óbvia presença política e militar do Irã no Iraque, há formas mais sutis e refinadas de "soft power" iraniano, que levantam questões sobre o futuro do Iraque e do Islã xiita, especialmente depois que Sistani, que já conta com 86 anos, partir.

Contudo, os temores citados tanto na mídia árabe quanto na oriental, de um domínio religioso iraniano no Iraque pós-Sistani, são exagerados. Esses temores subestimam a resiliência das instituições religiosas no Iraque bem como a enraizada resistência à teocracia entre os luminares do Islã xiita em Najaf. Preocupações de que Tehran suplante essa ortodoxia também exageram o alcance e a influência do Irã no Iraque. Esforços nesse sentido, como o livro mencionado acima, não são levados a sério pelos estudantes seminaristas do Iraque. Chegam a causar riso em muitos, por seus absurdos. Qualquer clérigo ligado ao Irã -ou a qualquer governo, incluindo o iraquiano- não será capaz de mobilizar as fileiras religiosas de Najaf. O apoio iraniano pode ajudar líderes políticos e de milícias em Bagdá, mas qualquer apoio a clérigos xiitas é contraproducente em Najaf.

O papel de Sistani

O Marjarato de Najaf -o qual Sistani lidera- tem papel central no Iraque pós-2003. Sistani se coloca acima da política e tem desempenhado uma função de unidade no país desde 2003. Acredita que clérigos não devem tomar parte nos braços executivo e administrativo do Estado, mas ele mesmo tem feito poderosas intervenções durante os tempos de crise.

Sistani forçou as autoridades estadunidenses ocupantes (com a ajuda das Nações Unidas) a realizar eleições gerais em janeiro de 2005, bem antes do que era desejado pela administração Bush. Os americanos inicialmente planejavam uma comissão para redigir uma constituição e criar uma assembleia geral através de prévias. Contudo, após a pressão incansável de Sistani, concordaram com eleições democráticas gerais. Foram essas tensões entre Najaf e Washington no processo político pós-Saddam que levaram o constitucionalista americano Larry Diamond -na época conselheiro da Coalition Provisional Authority em Bagdá- a comentar que Sistani "reiteradamente assumia posições mais democráticas do que os próprios Estados Unidos".

Em junho de 2014 Sistani convocou os cidadãos iraquianos para que se engajassem no combate ao ISIS (Daesh) após os terroristas terem ocupado Mosul e Tikrit. Então, pavimentou o caminho para que Abadi sucedesse Maliki, após enviar uma carta ao partido no poder deixando claro que o Iraque precisava de um novo primeiro-ministro, encerrando assim o desejo de Maliki (e de Tehran) por um terceiro mandato.

Em augusto de 2015, no pano de fundo dos crescentes protestos contra a corrupção no governo, Sistani emitiu chamados aos líderes políticos iraquianos para que levassem adiante as reformas necessárias. Ao contrário de suas outras intervenções, contudo, que tiveram impacto imediato, essa convocação para reformas encontrou a forte resistência de uma elite corrupta, entrincheirada no governo, que para manter seus privilégios tem conseguido barrar qualquer reforma significativa.

O que acontecerá após Sistani?

Uma vez que Sistani venha a falecer, seguramente haverá um período de incertezas em Najaf e ao longo do mundo xiita, mas não será um vácuo que possa ser preenchido ou explorado por algum poder de fora. A transição de Sistani para o próximo Grande Aiatolá pode levar semanas, meses ou anos. Ao contrário da Igreja Católica, onde os cardeais se reúnem no Vaticano para eleger o próximo Papa através de voto secreto, o processo em Najaf é muito mais fluido, vago, e inclui pressões tanto de cima quanto de baixo.

De início, a rede global de instituições e representantes ligados a Sistani terão um papel central na transição. Eles se inclinarão para um ou mais clérigos em especial, após a morte de seu líder. Apesar do processo de sucessão ser complicado, é fácil prever quem o próximo Grande Aiatolá será, ao contrário do próximo Papa, porque existem apenas poucos clérigos hoje com idade o suficiente para assumir o lugar de Sistani. A transmissão da sucessão será baseada no consenso, conforme o conhecimento e a religiosidade do pretendente.

Como são necessárias décadas de estudo e ensino para se tornar um Grande Aiatolá, os clérigos adquirem convicções acerca das características e personalidades dos sábios, assim como os estudantes universitários classificam seus professores após ter tido aulas com eles.

É altamente improvável que alguém fora de Najaf -que tem florescido após a queda do regime baathista em 2003- assumisse a liderança no futuro próximo. Najaf é lar de outros três Grandes Aiatolás além de Sistani: Mohammed Said al-Hakim, Mohammed Ishaq al-Fayadh e Bashir Hussain al-Najafi. Eles têm visões diferentes em matéria de política e de lei islâmica, e é claro que possuem temperamentos e personalidades próprios. Contudo, nenhum deles acredita na aplicabilidade da Wilayat al-Faqih.

O processo de transição também será influenciado a partir de baixo, em uma dinâmica que envolve as tribos do sul do Iraque, xiitas leigos e famílias da região e do mundo inteiro, que começarão a se posicionar a favor de um dos Grandes Aiatolás existentes. Eventualmente, em um lapso de tempo que ninguém pode prever, um dos Grandes Aiatolás poderá alcançar uma grande massa de apoiadores e obter reconhecimento para se erguer como o "primeiro entre iguais" e assim assumir o manto da liderança.

Nesse sentido, é importante lembrar que a transição do Grande Aiatolá Abulqasim al-Khoei para Sistani, que teve início em 1992, levou seis anos para se consumar, mas ocorreu durante uma época particularmente difícil para as instituições religiosas xiitas. A transição anterior, em 1970, do Grande Aiatolá Mohsin al-Hakim para al-Khoei, levou apenas um ano.

Alguns predizem que a transição pós-Sistani poderia levar entre dois a quatro anos, mas a terrível situação política e de segurança no Iraque, combinados com a liberdade sem precedentes desfrutada agora em Najaf e com as modernas formas de comunicação, podem acelerar o processo. A instabilidade no resto do país pode levar os cléricos em Najaf a apressarem o processo de sucessão, para que seja reduzido o grau de incerteza que inevitavelmente continuará pairando sobre o Iraque após a derrota do chamado Estado Islâmico.

A era pós-Sistani

Sistani não é apenas um "indíviduo", em um sentido religioso, mas o produto de uma instituição religiosa milenar que produziu muitos Sistanis antes dele e que produzirá também os próximos outros. Tal instituição de Najaf é uma rede de escolas, clérigos e funções que pode parecer confusa, mas que constitui um sistema que se orgulha de sua independência política e financeira em relação a qualquer centro de poder. É construída sobre valores tradicionais e ortodoxos do Islã xiita que o Irã, apesar de seu poder econômico, militar e político, não pode e nem poderá mudar. Isso não significa que os iranianos pararão de tentar influenciar o debate no mundo xiita em prol de seus próprios interesses nacionais, e sim que falharão nessa tentativa. Como as pesquisas nos arquivos do partido baathista têm revelado, nem mesmo no auge de seu poder Saddam Hussein conseguiu forçar Najaf -que, ao contrário, passava pelos momentos mais difíceis de sua história- a tomar posições pró-governo durante a Guerra Irã-Iraque.

Os Estados Unidos e o mundo árabe deveriam reconhecer que o Marjarato no Iraque não é uma instituição politizada, que possa sucumbir aos ditames domésticos ou externos, ao contrário de outras instituições religiosas no Oriente Médio que servem de porta-vozes dos governos ou cujos líderes são indicados politicamente. A influência de Sistani hoje é um fardo que será carregado por seu sucessor. Nós presenciaremos a continuidade -e não mudança-, do papel de Najaf como força moderadora na política iraquiana.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...