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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Considerações sobre o wudu


J. L. Tejo
editor do blog

Algumas reflexões sobre wudu (ou abdesto, do persa), a ablução ritualística performada, por exemplo, antes das orações. A prática possui previsão corânica:

Ó crentes, sempre que vos dispuserdes a observar a oração, lavai o rosto, as mãos e os antebraços até aos cotovelos; esfregai a cabeça, com as mãos molhadas e lavai os pés, até aos tornozelos. E, quando estiverdes polutos, higienizai-vos; porém, se estiverdes enfermos ou em viagem, ou se vierdes de lugar escuso ou tiverdes tocado as mulheres, sem encontrardes água, servi-vos do tayamum com terra limpa, e esfregai com ela os vossos rostos e mãos. Allah não deseja impor-vos carga alguma; porém, se quer purificar-vos e agraciar-vos, é para que Lhe agradeçais. (5:6) (1)

Há que ponderar o porquê da prescrição da prática. Enxergamos três fatores nesse sentido.

A primeira dimensão é a mais objetiva e concreta, qual seja, o caráter de profilaxia. Mormente em uma sociedade pré-industrial, bem antes do advento da pletora de produtos higiênicos disponíveis nas gôndolas dos mercados, o costume da lavagem de partes do corpo ao longo do dia tem evidente efeito salutar. O ato aparentemente banal de se lavar adquire assim caráter ritualístico, prescrito divinamente, sendo certo que o Islã "coloca grande ênfase da higiene" (2), havendo inúmeras narrativas nesse sentido:

O sagrado profeta (saws) disse: tente se manter limpo o máximo que puder. Em verdade, Allah baseou o Islã na limpeza. (3)

É uma benção lavar as mãos antes e depois das refeições ([Sunan] Abu Dawud e [Jami] Tirmidhi) (4)

Despiciendo apontar a utilidade disso. Prevenção de doenças e infecções, um contato social mais agradável em razão da higiene corporal, tudo faz com que seja recomendável o hábito da lavagem.

O segundo elemento por trás da recomendação ablutória é mais pragmático. Tratar-se-ia da necessidade do Islã, enquanto nova prática cultural e religiosa, não confrontar, naquilo que não fosse importante, os costumes em voga entre os povos da Península Arábica. O novo em si traz o choque; maior o choque, maior a resistência à novidade. É nesse sentido que Ali Shariati expõe:

O Profeta preserva a forma, o "recipiente" de costumes que têm raízes profundas na sociedade, aos quais as pessoas se habituaram a praticar naturalmente há gerações, mas modificou o "conteúdo", o espírito, a direção e a aplicação prática desses costumes, de uma forma revolucionária, decisiva e imediata (...) Seu método é este: ele mantém a forma do costume tradicionalmente praticado, mas altera seu conteúdo, de um jeito revolucionário (...) Antes do Islã, havia o costume da ablução total, tanto como crença como quanto superstição. Os árabes pré-islâmicos acreditavam que se uma pessoa tivesse relações sexuais seria possuída por um djinn (espíritos que habitam o mundo) e seu corpo e sua alma estariam impuros. Até que encontrassem água e realizassem uma ablução total, a pessoa não poderia se libertar do djinn. (5)

A tradição é mantida, portanto, mas tornada racional e despida da superstição.

O terceiro elemento por trás da ablução, ao contrário dos dois anteriores, é de ordem espiritual. Vamos dividi-lo em dois aspectos, conforme nos parece. Esteja o leitor ciente de que aqui adentramos um campo subjetivo, da impressão pessoal e sem possibilidade de aferição empírica.

O primeiro aspecto dessa dimensão espiritual do wudu é a preparação da atmosfera psicológica, mental e espiritual (tome-se os três como sinônimos aqui, não há diferença epistemológica no sentido que queremos impingir) para a oração. Com efeito, o ato de orar -nada menos que a relação dialógica entre indivíduo e divindade, criatura e criador- não pode ser entendido como uma mera repetição de fórmulas e gestos, mecanicamente reproduzidos de forma burocrática. Ao contrário, o devoto precisa estar consciente e desperto; ciente do que diz e aberto às impressões e inspirações que podem ocorrer durante o ato de oração. A lavagem pré-oração do corpo funciona como uma meditação prévia, um aquecimento que lhe sintonizará no "modus" oratório. Ao som do azhan [adhan], o devoto vai ao exílio momentâneo dos afazeres cotidianos para refugiar-se na oração. A ablução é o momento de transição, o limiar onde o corpo é lavado de sua carga mundana para, purificado, adentrar o reino do espírito. Para efeitos de comparação, ninguém passa de um estado de agitação frenética imediatamente para o de sono profundo. É preciso desacelerar, relaxar, ou seja, toda uma fase rumo ao adormecimento. O wudu seria, para a oração, esse estágio transicional.

O segundo aspecto da dimensão espiritual do wudu é ainda mais sutil. Aqui, não temos mais que suposições e teses. Refiro-me ao efeito purificador, espiritualmente falando, da água de ablução. A água aparece como agente de limpeza espiritual em outras tradições: por exemplo, a água dita fluidificada (isto é, aquele sobre a qual incidiram os fluidos, a energia, dos entes desencarnados) no Espiritismo e a água benta católica, a qual, após abençoada pelo sacerdote, adquire propriedades místicas.

À luz dessas analogias, perguntamos. Ao performar o wudu, o muçulmano não estaria lavando, mais que o corpo, seu próprio ser etéreo, espiritual? Se concebermos como possível a existência de energias densas e pesadas, não visíveis a olho nu, que se aderem ao corpo dito astral (ou espiritual) do indivíduo, e que a água tornar-se-ia benta por estar consagrada à ablução ritual, poderíamos dizer que tal água operaria também em nível astral (ou espiritual), dispersando essas energias e tornando o crente, então, purificado para a oração não apenas física mas também espiritualmente?

São perguntas que deixamos em aberto.

Sintetizando tudo que falamos acima, eis o porquê do wudu, conforme nos parece:

A) É uma prática higiênica salutar;

B) É a manutenção de um costume já arraigado, evitando-se que se agrave, sem necessidade, o choque cultural trazido pela Revelação;

C) Serve de preparação do devoto para a prática da oração:
c1) acalmando sua mente e criando a atmosfera emocional adequada;
c2) purificando seu corpo dito astral (ou espiritual).

Como se vê, a ablução ritualística tem caráter instrumental. Ou seja, não é um fim em si; não se exaure nela mesma, e sim é preparatória para algo além, que é a oração. Portanto, com a devida vênia, achamos que não há necessidade de gestos específicos ou qualquer outra formalidade para o ato de se abluir.

A sunna tende a regrar ao máximo a prática. Vejamos por exemplo em Bukhari:

Narrado por Ata ibn Yasar. "Ibn Abbas fazia ablução e lavou seu rosto (da seguinte maneira): ele pegou uma mão cheia de água e lavou sua boca e nariz. Então, encheu novamente a mão (com água) e juntou as mãos (gesticulando) e lavou o rosto, pegou mais água e lavou seu antebraço direito. Então novamente pegou mais água e lavou seu antebraço esquerdo, passou as mãos molhadas sobre a cabeça e, pegando mais água, despejou-a sobre seu pé direito (na altura do tornozelo) e o lavou, fazendo similarmente no pé esquerdo. E explicou: 'Eu vi o Profeta de Allah fazendo a ablução dessa maneira'" (Volume 1, Livro 4, número 142). (6)

Ou em Ibn Majah:

Narrado por Umar [Omar] ibn Khattab. "O Mensageiro de Allah viu um homem realizando a ablução, e esqueceu [de lavar] um parte do pé do tamanho de uma unha. O Mensageiro mandou que o homem fizesse novamente a ablução e a oração, o que foi cumprido" (Volume 1, Livro, 666 [referência inglesa], Livro 1, 711 [referência árabe]). (7)

O regramento minucioso da prática de ablução é uma constante, com roteiro de gestos, fórmulas proferidas a cada etapa e hipóteses invalidadoras (8).

Em nossa opinião, não há necessidade de formalismo. Conforme expusemos acima, a ablução opera em um nível sutil, em um plano mental, espiritual, mesmo simbólico. Discordamos portanto desses que falam em atos que "anulam" a ablução (ou, pior, em atos que "invalidam" a própria oração, como se nosso contato personalíssimo com a divindade estivesse subordinado a gestos e palavras mecanicamente reproduzidos). O que importa é a intenção do ato e que o devoto se concentre nele. Também não consideramos a ablução conditio sine qua non para a oração. No que tange ao aspecto da higiene, tampouco há que se prescrever formalidades ou roteiro: pouco importa se é lavada primeiro a mão esquerda, ou a direita, um pé antes do outro etc. Como no dito popular, por que focar no dedo ao invés de na lua que o dedo aponta? O apego ao formalismo ritualístico obnubila o aspecto espiritual.

Que diríamos, nesse sentido, do tayammum, a ablução "seca"? Decerto ninguém se "lava" com areia. O sentido é simbólico.

Com humor sufi, Bulleh Shah ponderava: "Se Deus é encontrado/ através das abluções/ então sapos e peixes/ Lhe encontrariam primeiro" (9). Partilhamos dessa opinião, e com esses versos encerramos o presente texto.

*

Referências bibliográficas

(1) HAYEK, Samir el. "Os Significados dos Versículos do Alcorão Sagrado".

(2) Queensland Health and Islamic Council of Queensland.  "Health Care Providers’ Handbook on Muslim Patients". p.10. 2.e.d. Queensland Health, Brisbane [Austrália], 2010.- http://bit.ly/2cmnS0k.

(3) "Hygiene in Islam" - http://bit.ly/2caJSGQ.

(4) "Islamic teachings and modern medicine" - http://bit.ly/2bXstW6.

(5) SHARIATI, Ali. "The Particular Method of the Prophet Stemming from his Traditions". In "Fatima is Fatima" - http://bit.ly/2c6k5Uq.

(6) Sahih al-Bukhari - http://bit.ly/2cuf8lq.

(7) Sunan ibn Majahhttp://bit.ly/2cnJ4P9.

(8) AL-KHAZRAJI, Taleb Hussein, "A oração no Islam". trad. Aídah Rumi. pp. 15-22. 2.ed. São Paulo: Centro Islâmico do Brasil, 2014.

(9) "Se Deus é encontrado através das abluções...". Poema de Bulleh Shah - http://bit.ly/2d1wwOi.

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