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sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Nossa identidade em constante mudança


A matéria abaixo é sobre a médica, escritora e ativista egípcia Nawal el-Saadawi, nos marcos de sua participação no festival Africa Writes que se deu em julho deste ano, no Reino Unido. A veterana tem sofrido perseguição, prisão e ameaças ao longo da vida, em razão de sua militância.

"Todos temos sangue misturado, e quanto mais misturado, melhor"

Com uma carreira de meio século e mais de 60 obras publicadas no campo da ficção e não-ficção, Nawal el-Saadawi é hoje uma das figuras mais proeminentes na África e no mundo árabe.

Ao longo de décadas, os livros desta egípcia de 84 anos têm desafiado o status quo das estruturas patriarcais, religiosas e capitalistas. E a escritora ganhou reputação internacional como uma corajosa ativista que questiona os detentores do poder, apesar dos perigos decorrentes disso.

Como Saadawi diz, seu lado rebelde foi herdado de seus pais e em especial de sua avó paterna, e a escrita dá vazão à sua necessidade de se expressar. Em seus trabalhos ela enfrenta uma diversidade de temas polêmicos, como mutilação genital feminina, prostituição, violência contra mulheres e fundamentalismo religioso. E explora esses assuntos tanto em escritos de ficção -como "Women at Point Zero", "Searching" e "God Dies by the Nile" e não-ficção, como "Women and Sex" e memórias diversas.

Como escritora e ativista feminista, Saadawi chama a atenção para os direitos das mulheres globalmente, mas sua influência é particularmente mais forte no movimento feminista egípcio.

"Antes da revolução egípcia [NT: refere-se ao movimento que derrubou Mubarak em 2011], jovens trabalhavam duro para organizar o que hoje eles chamam de "'Fórum Nawal el-Saadawi'", ela explica. Nesses seminários mensais, seus livros eram discutidos em detalhes, e ao longo desses evento, diz ela, "as novas gerações foram criando uma revolução cultural".

"Eu sou uma crítica dos superpoderes coloniais, capitalistas, racistas e patriarcais".

Saadawi é considerada uma das mais prolíficas e proeminentes escritoras do mundo árabe. Contudo, enxergá-la apenas como uma escritora árabe é um desserviço tanto para sua influência ao redor do mundo quanto para seu próprio senso de identidade.

Saadawi é crítica de políticas identitárias, que ela considera "parte da linguagem colonial capitalista e ideias do dito pós-modernismo". E ela não faz demarcação entre suas diferentes e múltiplas identidades, pois considera como sendo racismo a noção de "identidade pura (ou sangue puro)".

"Minha identidade não é fixa", ela diz. "Não é como um colete de ferro, e sim algo que está em constante mudança e que é múltiplo e multiplicador. Eu tenho sangue misturado da África, Ásia e da Europa até a Islândia; do antigo politeísmo egípcio à filosofia hindu e às religiões monoteístas. Todas as pessoas são mestiças, todas têm o sangue misturado, e quanto mais misturado, melhores somos".

Apesar disso, quando se trata de escrever, o idioma escolhido por Saadawi decididamente é o árabe. Seus trabalhos foram traduzidos em 20 línguas, mas ela ressalta as dificuldades inerentes a qualquer tradução. "A escrita criativa é musical em sua linguagem, e não se pode traduzir música sem que algo se perca", ela diz.

Além disso, ela questiona o porquê de tantos escritores "serem forçados a ser lidos em inglês ou francês" e lamenta que "muitos escritores africanos famosos ignorem seus povos e suas línguas, para poder ter reconhecimento na literatura mundial".

"Escritores ingleses ou franceses não são obrigados a ser lidos em árabe ou chinês", ela diz, acrescentando que "há bilhões de pessoas na África e na Ásia que não falam nem inglês nem francês".

O domínio desses dois idiomas -que ela atribui ao fato "dos poderes capitalistas e colonialistas serem falantes principalmente de língua inglesa ou francesa"- é uma tema que Saadawi tem confrontado. "Eu ainda sou ignorada pelo mundo literário porque escrevo em árabe, e também por criticar as forças capitalistas, colonialistas, racistas e patriarcais", diz.

Essa falta de reconhecimento também se estende ao universo de escritoras, de acordo com Saadawi, que diz: "escritoras africanas, como todas as escritoras do dito Terceiro Mundo, são ignoradas pelos poderes coloniais, capitalistas e patriarcais".

Em todo caso, os tempos parecem estar mudando. 50 anos após a publicação de "Promise land" de Grace Ogot e "Efuru" de Flora Nwapa, as escritoras africanas têm recebido atenção dos críticos e pode-se dizer que estão à frente da cena literária do continente.

Meio século após Saadawi ter começado a escrever, essa é uma grande evolução, e a octogenária ativista ressalta o fato das escritoras africanas "estarem se rebelando, junto com os povos oprimidos".

Nawal el-Saadawi será atração no quinto festival Africa Writes, em dois de julho [de 2016] em Londres, abordando as dificuldades de ser uma escritora e os desafios enfrentados pelas mulheres em sociedade tradicionais.

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