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sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Por que não quero um Estado "islâmico"


O texto abaixo é da jornalista e ativista política Rasha Awad, que vive às voltas com a censura do governo do Sudão, e trata da importância da laicidade contra as distorções dos Estados ditos "islâmicos".

Por que não quero um Estado "islâmico"

Rasha Awad

Estou ciente de que o mero título acima é suficiente para que tribunais inquisitoriais desembainhem suas espadas e para que sejam emitidas fatwas me declarando uma infiel, ou para que sejam proferidos apelos e sermões para que eu me arrependa- alguns bem-intencionados, outros aparentemente religiosos mas na verdade abrigando manobras políticas.

Mas eu escolhi esse título deliberadamente, porque penso que uma das razões da disseminação do "Islã político", e um dos mais importantes motivos que indicam que essa fraude em nome da religião continuará, é justamente a abordagem apaziguadora e a recusa de uma confrontação crítica e radical, e até mesmo a "identificação inconsciente" por parte de políticos e intelectuais seculares e liberais com aqueles que promovem o discurso do Islã político.

Para dar algumas mostras disso, sempre que a questão é astutamente levantada, por exemplo, com relação ao status do "Estado Islâmico" e a aplicação da "Sharia islâmica" no Sudão, muitos dirão que o que Jaafar Nimeiri aplicou nos anos 80, ou o que o regime Inqadh ("Salvação") [NT: o regime que se seguiu ao golpe militar de 89, no Sudão] aplicou desde sua revolução agourenta, não foi a "verdadeira Sharia", mas uma "distorção da Sharia", ou então que o que "Salvação" fez no governo está em contradição com as tarefas do "Estado Islâmico". Outros vão além e perguntam de forma acusatória, "isto é um Estado Islâmico?", como se o Estado Islâmico e a Sharia islâmica fossem realidades supostamente evidentes, e que as diferenças diriam respeito à aplicação e adequação para que alcancemos esse objetivo.

Esse tipo de argumentação traz consigo os germes da criação de um "novo Islã político" para tocar adiante a tarefa de aplicar a lei islâmica "apropriadamente" e remover a "distorção" perpetrada seja por Nimeiri seja pelo Inqadh. Após o que estabelecerão um "verdadeiro Estado islâmico" nas ruínas do atual "falso Estado islâmico". Portanto precisamos nos preparar para receber os novos farsantes que abrirão para nós uma nova página de chantagem emocional sob o nome de "lei islâmica" e "Estado islâmico". Tal página continuará aberta a menos que removamos a falsa santidade dos termos "Estado islâmico" e "Sharia islâmica" mediante uma discussão racional sobre eles, discussão que deve submetê-los a uma desconstrução sistemática e conceitual e fazer com que sejam decididamente superados. Então, um discurso secular pode ter início a partir de bases inteiramente livres desse "envolvimento inconsciente" na armadilha do "Islã político".

Contudo, estabelecer um discurso secular e naturalizá-lo no ambiente cultural tornará a religião islâmica um ramo importante e essencial na formação dessa consciência. Isso requererá uma dolorosa gestação intelectual no interior da herança islâmica conjuntamente com a crítica aos grupos islâmicos contemporâneos e seus referenciais, se desejarmos cristalizar uma nova consciência e novas visões intelectuais que possam acomodar questões genuínas e sinceras de milhões de muçulmanos que não estão envolvidos nessa fraude política em nome do Islã. A principal dessas questões é se é possível para um muçulmano devoto apoiar o secularismo e a democratização do Estado, ou interagir positivamente com os avanços da mente moderna. Nesse sentido, tal mentalidade moderna também deve objeto contínuo de debate e de análise crítica.

Quanto àqueles muçulmanos implicados nesse pecado de explorar o Islã em sua fraude política, não podem ser tratados na defensiva. Sempre que perguntam ardilosamente, "você aceita ou não aceita o Estado islâmico e a lei islâmica?", minha resposta, pela qual eu assumo inteira responsabilidade, é dizer que rejeito total e inequivocadamente tais ideias, pelas razões detalhadas aqui (o espaço do presente texto é limitado para uma fundamentação teórica mais detalhada dessa resposta, e tenho abordado isso em diversos artigos. Mas em essência minha resposta é a seguinte):

Primeiro- os termos "Estado islâmico" e "lei islâmica" são termos políticos modernos cunhados por pessoas, e não têm, em minha opinião, nenhuma santidade religiosa que me faça reticente em expressar minha rejeição a eles. O Islã, como o compreendo, não exige a construção de um Estado dito "islâmico" e cujo objetivo primário seja "aplicar a lei islâmica".

Segundo- muçulmanos precisam das instituições estatais na medida em que precisam de funções necessárias à vida cotidiana, como segurança, leis e organização da sociedade em seus diversos aspectos. Eles não precisam de um Estado para que sejam muçulmanos! O "Estado" é uma entidade histórica que muda e se desenvolve constantemente conforme as alterações de tempo e lugar, e em consequência de demandas conforme o período histórico, de acordo com as condições políticas, econômicas e sociais. De fato, mesmo em um curto período de tempo o Estado pode variar de lugar a outro.

Terceiro- no que diz respeito à administração pública e ao exercício de ações políticas não há algo como uma "lei islâmica" no sentido de um conjunto de normas, legislação ou programa, desde o campo da segurança, defesa e política, das relações econômicas e internacionais, passando por educação, agricultura, indústria, alfândega e aviação, ou navegação marítima e fluvial, ou ainda meio ambiente, ou então sobre fornecimento de água e saneamento básico, eletricidade e comunicações, ou projetos de infraestrutura para estradas, pontes, aeroportos etc.

Para nenhuma dessas áreas há qualquer programa, geral ou específico, que poderíamos chamar de "legitimamente islâmicos", e isso é confirmado inclusive por líderes linha-dura salafistas islamistas. Portanto, ninguém que ingresse na arena política de um Estado do século 21, se colocando como uma alternativa de governo, pode dizer, de forma razoável ou ética, que seu programa é aquele que aplica a lei islâmica, ou que está instituindo um "governo de acordo com o que Deus revelou". Porque ele será inteiramente incapaz de explicar, em detalhes, o que é que Deus teria revelado sobre o gerenciamento das áreas de atividade citadas acima, e sob as condições históricas do presente momento. Sendo que essas áreas de atividade são o objeto das ações estatais e o campo dos políticos que administram tais ações. São atividades ligadas à alimentação, segurança e saúde dos cidadãos, sua educação, moradia e transporte. Não cabem aqui floreios retóricos, ou discussões obscuras de jurisprudências ou doutrinas, haja vista que são questões urgentes que não admitem demora.

O Estado e o processo político são por sua natureza relativos, mutáveis e estão em constante movimento. O mesmo vale para o conhecimento, habilidades e experiências humanas. Não há algo como uma "lei islâmica" nesse campo- isso é apenas um pleito, uma reivindicação. E quem reivindica isso, acrescentando palavras de ordem como "O governo pertence a Deus", "Governar de acordo com o que Deus revelou" etc. estão interessados em ascender, sem que tenham direito a isso, a uma "plataforma acima do nível humano" que irá imunizá-los contra críticas, garantir-lhes privilégios políticos, e permitir que promovam suas próprias visões e programas sem nenhum tipo de limite. E lançarão tal discurso de sobre sua plataforma transcendental, dizendo desenvergonhadamente às pessoas que "Isso tudo é de Deus! Essa é a lei de Deus! Esse é o julgamento divino!".

Há textos corânicos que trazem disposições sobre punições hadd [corporais], direito de vingança, herança e normas de casamento, divórcio e regras para mulheres, leis de guerra, o [tributo] jizya, e o governo de acordo com a revelação divina, o que os islamistas utilizam como evidência da tarefa de estabelecer um Estado islâmico sob as diretrizes de uma inflexível "lei islâmica". Mas se lermos tais textos corânicos em seu contexto histórico e social, e com uma mente livre de abordagens tradicionais, podemos concluir que a existência de um Estado islâmico é uma impossibilidade.

Muitos têm batido nessa tecla. Mas o Islã político confisca a legitimidade de qualquer pensamento que vá além da metodologia tradicional, utilizando a arma do takfirismo terrorista. É porque querem negar o fato de que o Islã pode ser entendido de diversas maneiras. Essa pluralidade não exclui nada, nem mesmo o status jurídico pessoal, por exemplo, o que mostra que a "Sharia islâmica pura" é sujeita às mais variadas interpretações entre os muçulmanos. Exemplificativamente, há a lei tunisiana que proíbe poligamia e autoriza a adoção, baseada na argumentação jurídica do sheikh Tahir al-Haddad, ou a lei marroquina em seu Direito de Família [Mudawwanat al-Usra] que não dá ao marido o direito unilateral ao divórcio, admitindo-o apenas perante um juiz. Tal legislação restringe o casamento poligâmico a duas esposas, e ainda assim sob determinadas condições legais e com a idade mínima de dezesseis anos. A autoridade disso tem por base interpretações esclarecidas do Islã. Por outro lado, a legislação no Sudão prevê os dez anos como idade mínima para casamento, permite o direito de divórcio exclusivamente ao marido (que pode fazê-lo com uma simples palavra) e permite-lhe casar com quatro esposas sem nenhum requisito legal. E isso tudo também é chamado de "lei islâmica".

Isso é uma simples evidência de que não existe um conjunto inflexível de normas sobre a vida social, política e econômica que possa ser chamado definitivamente de "lei islâmica". Há objetivos universais e ingredientes éticos e morais na fé islâmica, mas tudo está em constante evolução e precisa de roupagem adequada.

Quarto. A chantagem emocional que o Islã político pratica com seus lemas de "Estado islâmico" e "lei islâmica" é utilizada para que se matem reciprocamente por causa de divergências e interpretações diversas sobre o "que Deus revelou" no Corão ou sobre justamente o que seria "Estado islâmico" e "lei islâmica".

Em razão disso, o Islã político fracassa totalmente em garantir a coexistência pacífica de suas próprias frações. Como poderia, então, conviver com muçulmanos seculares e com não-muçulmanos? A luta ente muçulmanos pelo poder político vem desde a época do terceiro califa, Uthman ibn Affan, até os dias de hoje, o que mostra que o Islã não é nem um Estado nem um sistema político. Os secularistas, então, devem parar de utilizar o velho argumento contra o Islã político: que o Estado precisa ser secular em razão da presença de cristãos. O argumento mais forte é o de que muçulmanos -mais que isso, os próprios islamistas!- divergem e têm opiniões diversas sobre isso. Há inúmeras evidências, antigas e modernas, a esse respeito.

Quinto. Quem quiser que o Islã desempenhe um papel preponderante na vida das pessoas, deve ter em mente que isso só é possível na medida em que o Islã cumpra sua verdadeira função, ou seja, a de realizar melhorias no comportamento e aperfeiçoamento moral dos indivíduos, no que tange a sinceridade, honestidade, respeito aos compromissos, o correto tratamento para com seres vivos e inanimados, o aprofundamento nos valores da justiça, liberdade, fraternidade e igualdade, a ajuda aos pobres e necessitados, o despertar da consciência para tudo que é bom e belo e a misericórdia para com a humanidade.

Uma das principais razões da expansão do discurso do Islã político é a ausência de esforços sérios por parte dos movimentos de ressurgência cultural nas sociedades muçulmanas em fazer um diálogo iluminista. Não pode haver ressurgência para nossas sociedades sem que um iluminismo tenha espaço no coração dessa ressurgência, trazendo novas metodologias e novas visões filosóficas para o Islã. O objetivo deve ser o de livrar a fé da concha islamista que utiliza o termo "Islã" como marca registrada para negociar interesses políticos. O islamismo só pode ser libertado disso através de uma crítica ousada e aguda aos conceitos e termos que transformaram o discurso islamista em um fundamento doutrinário, que faz com que os opositores sejam tratados não como adversários políticos de uma política de homens, mas como adversários da própria fé islâmica. Adversários de Deus e seu Profeta!

É assim porque o entendimento prevalecente entre os muçulmanos é aquele herdado das escolas e seitas tradicionais, escolas já saturadas e reproduzidas desde o quarto século do Islã (século X da Era Cristã), que ainda controlam as mentes dos muçulmanos e adestram as autoridades religiosas dos movimentos islamistas contemporâneos- mesmo aquelas que afirmam estar renovando a fé. Os islamistas conseguem espalhar o terrorismo intelectual através dos termos "lei islâmica" e "Estado islâmico" facilmente e sem esforço, porque a atmosfera cultural e intelectual onde esses grupos operam não está suficientemente preparada para compreender o discurso islamista intelectualmente, diante de um chamado emocional, romântico e nostálgico. Superar isso requer gente ousada e corajosa, com suficiente devoção e perseverança para tocar essa árdua tarefa.

Em todo caso, esse projeto não está começando do zero. Há um acúmulo de contribuições intelectuais, sérias e esclarecidas por parte de muitos pensadores que começaram um processo de escavação arqueológica na herança islâmica a partir de variadas perspectivas, utilizando múltiplas metodologias, desde meados do século XIX até os dias de hoje. Há o acúmulo de tal legado iluminista nos diversos povos muçulmanos, e o Sudão não é exceção. Mas realizar a transição histórica dessas comunidades rumo à era moderna continua um processo vacilante, e é algo que requer nossa concentração.

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